quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O outro corvo


Não era um prédio londrino, cinza e antigo, cercado de névoas frias e invernais,tampouco mansão sombria; não parecia nada do que vemos em contos góticos e iguais.Era um prédio paulistano, como tantos outros iguais.Era isso e nada mais.

Não era um estudante imerso em leitura triste de vagos e curiosos tomos de ciências ancestrais; nem o amante que sofria o que seria a maior das dores a afligir a nós mortais,ou seja: sabermos que hoje são restos mortais aquela que amamos, demais

Era , já disse, um prédio paulistano, em ano quente, verão terrível, de calores abissais.E,  no oitavo andar, o poeta viciado jazia,morto por uma dessas doses de drogas tão letais, que parecia o corpo, retorcido pelas convulsões letais,não ser um corpo, jamais.

Não era um cenário de Edgar Allan Poe; não era um poema dos que não se fazem mais;nem mesmo cena literária parecia. E o corvo sobre a mesa, entre envelopes e postais, era morto, empalhado, peso de prender postais: não falaria nunca mais.

 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Viuvezes


- Você não me deu atenção e, agora, a minha amiga morreu!

A voz do Domenico, ao telefone, revelava dor e revolta.Fazia sentido. Seis meses antes, a amiga dissera-lhe que temia ser morta pelo marido. Descobrira que , antes de se casarem,ele enviuvara por três vezes. Convencido das razões dela, pediu-me que investigasse o sujeito.Não convencido, não investiguei.

- Morreu de quê?

- De infarto.

Nenhuma novidade. As outras três mulheres também haviam morrido de causas naturais.Tínhamos um empate, até então: dois infartos e dois derrames.Poderia ter repetido a meu amigo que nada havia a ser apurado; para ele esquecer aquele assunto, porém, levando em conta o momento de dor e angústia dele e, admitamos, certo peso de consciência meu, convidei-o para uma conversa em meu escritório.

Vejo à minha frente, agora, um homem dominado pelo desalento:

- A gente poderia ter evitado... Você poderia ter evitado...

- O quê? Um infarto? O médico não lhe disse que ela tinha problemas de coração há muitos anos, vivendo sob permanentes cuidados médicos? E que um infarto era iminente, até porque se tratava de uma septuagenária?

- Sim, mas , e as outras?

- Pelo que sabemos, todas tiveram mortes normais, se é que podemos chamar a morte de normal em qualquer circunstâcia. Os médicos atestaram as causas , mostraram históricos clínicos, etc, etc.

- Mas você há de convir que foi muito estranho ele esconder de minha amiga as três primeiras viuvezes. Quando se conheceram, disse que tinha se casado apenas uma vez. Ela descobriu a existência das duas primeiras ex-esposas por acaso, mexendo em uns documentos. Não é esquisito? Foi isso que a vez ficar desconfiada e comunicar-me seu receio de que algo funesto lhe pudesse ocorrer.

- Ele pode ter omitido as tres três viuvezes anteriores por medo de que sua amiga não casasse com ele.Afinal, mesmo podendo provar a naturalidade das mortes das ex-mulheres, não poderia evitar que a então namorada visse nele um urubu de mau agouro, não é mesmo?

Meu pequeno gracejo deixou Domênico mais relaxado.Aproveitei para arrastá-lo ao café do térreo, nosso ponto preferido para conversações . Entre um gole e outro de cremoso com raspas de limão, procurei convencê-lo que o caso tinha muito de bizzaria e nada de criminoso. Afinal, minha experiência de 30 anos em investigações criminais não lhe garantiam nada?

- Em consideração à memória de minha amiga, não dava para você tentar levantar alguma coisa?

Seus olhos eram súplices e foi mais em consideração a eles que resolvi colocar meu nariz no asssunto.. E o que obtive, após alguns dias, foi os seguinte: 1) duas das ex- mulheres tinham 65 anos; uma 68 e a outra , a amiga de meu amigo, 70; 2) todas com saúde precária, o que não é de se admirar; 3) o sujeito tinha 51 anos e , a não ser por uma tosse nervosa, saúde de ferro. A primeira conclusão ante tais fatos é a altíssima probabilidade das mulheres morrerem antes dele.

Teríamos, então, um padrão? Ele as escolhera na certeza da própria viuvez.? Que, se não ocorresse naturalmente, poderia ser ajudada sem grandes esforços: um susto aqui para causar infarto; um pouquinho de sal a mais na comida ali para detonar derrames? Tudo muito lógico, se os relatórios médicos não mostrassem o contrário. Nada de fatores precipitantes, apenas o curso normal da vida e da morte. E depoimentos de familiares e amigos, tomados da maneira mais discreta possível, revelaram-me um marido atencioso, fiel, regrado, com quem uma mulher poderia até morrer de tédio, mas não de sustos.E mais: todas elas passaram a ter melhores planos de saúde, pagos por ele, após o casamento.

Era o que estava dizendo a meu amigo, no primeiro relatório após minha saída a campo, quando me interrompeu, excitado:

- Está evidente. Ao escolher mulheres doentes que, com certeza, morrerão antes dele, segue um plano meticuloso!

- Está bem-retruquei. E qual o motivo?.

- Dinheiro!

- Não. Todos os casamentos foram contraídos no regime de comunhão parcial de bens. Ou seja, um não herdaria bens amealhados antes pelo outro.E mesmo que fosse comunhão total, não há nada proibindo alguém de ficar com os bens do cônjuge morto do jeito que Deus e a lei permitem Além disso, o sujeito tem mais posses que as quatro mulheres juntas.Era mais provável que elas o matassem por dinheiro do que ele a elas. Duas eram viúvas, vivendo das modestas pensões dos ex-maridos, e as outras duas, soleironas aposentadas.É relevante acrescentar que seus bens foram adquiridos de maneira honesta, em mais de 30 anos de trabalho como advogado.

- Então, ele é um psicopata.

- Deve ser um caso único na psicopatologia criminal.Posso até ver as manchetes: “ Casava com mulheres mais velhas e doentes só para vê-las morrer, de morte natural, antes dele!” .

- Pode brincar, mas ainda acho muito esquisito essa sucessão de viuvezes..

- Pode ser esquisito, mas não criminoso.Portanto, não há nada a ser investigado.

Ao separarmo-nos, senti que, apesar da minha forte argumentação, meu amigo não estava totalmente convencido. E , dias depois, procurou-me, mais excitado ainda.

- Descobri uma coisa que pode levar-nos a concluir este caso.

Como se vê, já éramos parceiros em uma investigação criminal

- Havia algo em comum entre as mulheres- continuou, sem dar-me tempo para qualquer pergunta. As quatro tinham jazigos, adquiridos em cemitérios particulares, estes memoriais que proliferam por aí.

Parou e recuperava o fôlego, com ar triunfante, enquanto eu tentava entender por que o fato de terem literalmente onde cair mortas levaria um homem a casar-se com mulheres mais velhas , doentes e metaforicamente sem terem onde cair mortas.. Ousei expor a dúvida, o que o deixou perto de um estado de fúria:

- E sou eu que tenho de saber? Não é você o detetive? Apenas trouxe os fatos novos, que você não teve a competência de levantar antes.

Dito isso, pontuando palavras enfáticas com largos gestos, foi embora. Minutos após sua saída, conclui ser bem razoável a descoberta. Um homem casa com mulheres pelo menos 20 anos mais velhas; com moléstias graves, todas proprietárias de jazigos particulares... Não. Não podia ser tudo coincidência.Estava na hora do ataque frontal. Eu e o bizarro multiviúvo precisávamos conversar.

Aceitar o convite para uma entrevista mesmo sabendo que eu era investigador de polícia- e de minha intenção de apurar fatos relacionados a seus últimos quatro casamentos- não foi o que mais me surpreendeu naquele homem. O inusitado foi ele dizer que já estava esperando há muito tempo um contato daquele tipo.

E, quando me vi em seu escritório doméstico,ele por trás de uma escrivaninha de modelo antigo;eu na poltrona em frente, como um candidato a emprego diante do futuro patrão, outra não poderia ser a minha primeira pergunta:

- Por que o senhor estava aguardando há muito tempo um contato comigo?

- Não era bem com o senhor-respondeu, pausadamente. Tinha uma voz suave , compatível com sua baixa estatura, um metro e sessenta e cinco, se tanto, e massa ( uns 70 quilos, se muito).

- Na verdade- continuou- eu esperava a visita de um representante de polícia, que tanto poderia ser o senhor, como outro.

Fui, então, direto ao assunto. Disse que estava ali em carater informal, pois não havia nenhum procedimento investigatório oficial contra ele. Agradeci por ter-me recebido. Expliquei o que me motivara a procurá-lo, as suspeitas de sua última esposa, a interferência de meu amigo, etc.

Continuou não se mostrando surpreso.Passou a mão direita pelos já ralos fios de cabelos no alto da cabeça, recostou-se no espaldar alto da cadeira, e abriu o verbo.

- Sim, seu amigo está certo. Nada foi coincidência, nem mesmo os jazigos particulares, pois fui eu que os comprei..As mulheres foram escolhidas por causa de todas as caracteractísticas já citadas.Cuidei delas o melhor que pude, mas tendo a quase certeza de que não conseguiria evitar que morressem antes de mim.Era isso que eu esperava, mas, é claro, que não ocorresse por minha causa. Daí minha preocupação com a saúde delas, seu bem estar. As duas primeiras não tiveram nenhum motivo de queixas.

- E as outras? Que queixas tiveram?- perguntei, camuflando a ansiedade gerada por uma possibilidade que nem eu mesmo sabia aquilatar qual seria.

- Reclamaram da mesma coisa: de terem descoberto, por acaso, que eu não enviuvara apenas uma vez, como lhes havia dito antes do casamento.É claro que eu mesmo encarreguei-me de que as duas descobrissem, como se fosse por acaso, a existência das outras viuvezes.

- E por que fez isso?

- Para que ficassem desconfiadas e, de uma maneira ou de outra, fizessem os fatos chegarem ao conhecimento da policia. A terceira ficou meio chateada uns dias, mas não mais tocou no assunto, de onde concluí que não fora afetada além disso. Já a quarta, a amiga de seu amigo, fez exatamente o que eu esperava: mentalizou suspeitas, que acabaram contaminando terceiros, principalmente a polícia.

- Isso é profundamente contraditório. Se o senhor não cometeu nenhum crime; parece que foi até um benfeitor, por que, mesmo assim, fez tudo para que pensassemos o contrário.Com que objetivo?

O homem levantou-se, contornou a mesa. Previ que iria começar uma argumentação lógica. Era, afinal, um advogado, com experiência em júris, igual a muitos que eu vira atuar em julgamenos ao longo de minha carreira policial.

- Se o senhor olhar em volta, verá que a maioria dos livros nessas estantes é da área criminal. Observando melhor, notará que pelo menos metade das prateleiras abriga relatos de fatos policiais.Sou mais que um profissional do assunto, sou um estudioso.

Fez uma pausa, como a me dar tempo para confirmar suas palavras, o que fiz percorrendo com o olhar os quatro cantos da biblioteca.

- Minha primeira esposa – prosseguiu- foi a mulher a quem realmente amei.Fomos casados por 15 anos.Após sua morte, pensei ter perdido o sentido da existência. Descartei qualquer possibilidade de novos casamentos, a não ser que tivesse, para isso, um motivo mais forte do que solidão e sexo. E esta motivação chegou quando descobri que poderia conciliar casamentos com a montagem de uma tese jurídica sobre um assunto que foi minha obsessão por mas de 20 anos: o das evidencias de um crime. Quantos clientes tive que foram condenados com base apenas nas evidências coletadas por policiais? Apoiadas nelas, promotores hábeis convenceram jurados a colocarem homens inocentes atrás das grades.

- E o senhor acha que conseguiu avanço em sua tese com estes casamentos planejados?

- Tive certeza disso quando o senhor, considerado o mais hábil – e, por isso, mais famoso- detetive da cidade, telefonou-me para marcar essa entrevista. Consegui incitá-lo a começar uma investigação e concluir, por dedução própria, que evidências não garantem crimes. E mais: que por trás de um comportamento aparentemente criminoso pode esconder-se toda uma ação de benemerência.

- E isso terá alguma utilidade maior, além de agradar a seu ego pelo fato de ter manipulado e humilhado um policial?

- Toda essa história que vivi e que o senhor, sem querer, acabou vivendo, está documentada. Será de grande valia para a análise de criminalistas futuros.

Dito isso, levantou-se, calmamente, e despediu-se. De volta ao meu escritório, repassando essa trama maluca, sem coragem de concluir se o seu principal protagonista também o era, montei a minha própria tese: a de que, se isso fosse literatura, teríamos o primeiro conto policial sem crime, nem solução.

A carta do morto




 

Há uma semana, encarreguei o advogado de nossa família, pessoa de minha absoluta confiança, de lhe entregar esta carta porque não quero que ninguém saiba da existência dela,além,é claro, de vocês dois. Orientei-o para que o fizesse após minha morte- que ele não esperava fosse ocorrer tão cedo. E , para assegurar que só você conheceria o teor do texto, lacrei o envelope.

A essa altura, você já conhece todos os detalhes . Meu cadáver foi encontrado na ponte do lago do Parque Orquidário, em uma manhã chuvosa, com um ferimento a bala na cabeça, mais especificamente na fronte direita. Os bolsos do paletó e da calça tinham sido revirados; estava sem o relógio e a pulseira de ouro . Meu computador portátil sumiu. No local não foi encontrada nenhuma arma. A conclusão imediata da polícia , com certeza, é de que fui vítima de assalto.

A perícia técnica informou que morri no início da noite; ou final da tarde do dia anterior, dá no mesmo. O corpo foi encontrado de manhã, possívelmente por um vigia do parque.

Entendo que, neste momento, esteja surpresa com tais revelações. Pela caligrafia e assinatura, não tem dúvida de que a carta foi escrita por mim. Mas, como eu saberia, de antemão, tantos detalhes sobre meu próprio assassinato?

Por uma razão muito simples: não houve assassinato. Eu me matei.E você é a única pessoa que não poderia ficar sem saber isso, por duas razões. A primeira, é o fato de ter sido minha leal companheira por 30 anos, a única mulher a quem amei e a quem me devotei neste tempo todo. O segundo motivo: não posso correr o risco de outra pessoa vir a ser responsabilizada e punida por minha morte. E , sabendo o que realmente aconteceu, você poderá evitá-lo, se isso for necessário. Jamais deverá deixar que um inocente pague por meu ato extremado. Esse deverá ser o único motivo pelo qual deve ser revelado que me suicidei.

Entre os muitos fatores para seu estranhamento diante deste texto, está a repetição da expressões como " minha morte", " meu cadáver", " meu assassinato" . Compreendo. Você, mais do que ninguém, conhece minha repulsa e atração simultâneas por este nosso inevitável destino. Sabe o quanto o estudei,à luz das religiões, da filosofia, da ciência. E sabe, mais do que ninguém, que, acima mesmo da própria morte, apavorava-me a dor e o aniquilamento . Por que ,além de supremo mal, a morte tem, ainda, de ser antecedida pela dor e precedida pelo esquecimento?

O homem tem tido relativo sucesso na luta contra o olvido pós- morte, construindo mausoléus, perpetuando túmulos. Que o digam os faraós egípcios, com seus corpos imperecíveis e pirâmides gigantescas, o quanto essa tentativa pode ser bem sucedida. Entretanto, o que nos pode garantir que evitaremos o sofrimento pré-morte? As dores lancinantes, as agonias inenarráveis que antecedem o último suspiro?

Minha reação ao esquecimento você conhece, pois acompanhou, por anos, os esforços para a construção daquele mausoléu da família no cemitério da congregação.Um verdadeiro monumento, que será admirado por gerações e gerações e no qual investi uma parte considerável de nossa fortuna.

Restavam-me as providências para evitar o sofrimento. Confesso que, antes, minha concentração em tal objetivo não era muito frequente.Nem tanto por achar ser meta implausível.Talvez em razão do bloqueio mental, comum a todo ser humano, que o impede de pensar nos sofrimentos que antecederão à morte- ou na morte, propriamente.

Há uns dois meses, entretanto, precisei ser mais objetivo quanto a isso. Os resultados de meus exames médicos anuais revelaram que sou portador de rara moléstia que provoca a paralisia gradativa do corpo. Sofre-se por semanas e meses sentindo-se cada uma de suas funções motoras e vitais fenecerem, até a paralisação total. Nada detém o processo. Nada suaviza o sofrimento proporcionado por tão lenta agonia.

Ainda com os resultados dos exames em mãos, tomei a decisão: matar-me-ia antes dos primeiros sintomas do mal. E seria da maneira mais simples, rápida e indolor que se conhece: um tiro na cabeça. Não poderia arriscar-me a coisas como auto-envenenamento, com suas dores e suas possibilidades de erro e as consequentes sequelas torturantes .

Planejei tudo cuidadosamente. E nisso fui ajudado por aquelas leituras de romances e contos policiais- lembra?- hábito que você sempre achou curioso, levando-se em conta minha propensão intelectual à filosofia e ao esoterismo.

Primeiro, escolhi o local. Não precisei procurar muito para descobrir que o Parque Orquidário preenchia todas as condições. É uma área pública, de livre acesso, durante todo o dia. Fora da temporada de verão, não é muito visitado e fica praticamente deserto nos finais de tarde. Depois, o parque possui uma ponte sobre o trecho mais estreito de uma pequena lagoa, tranquila. A ponte fica quase escondida por arbustos e plantas ornamentais. As razões da importância desses detalhes para meu plano você entenderá mais adiante.

Escolhido o local, era preciso determinar o dia. Não com base em datas, mas quanto às condições de tempo. Teria de ser em um desses períodos chuvosos da meia estação.

Comprei o revólver, clandestino, com número de série raspada, em uma dessas chamadas feiras do rolo, tão comuns em nossa região, onde se vende de tudo e não se pergunta nada. Escrevi esta carta, tirei uma cópia xerográfica, coloquei o original em um envelope, lacrei-o e entreguei a nosso advogado, com as orientações quanto à entrega.

Quando surgiu o dia propício, de chuva intermitente, com possibilidade de continuação por pelo menos mais 24 horas, dirigi-me ao parque. No caminho, desfiz-me do relógio, da pulseira de ouro e do computador portátil ( jamais serão encontrados sob o mar, nos costões da península, onde os joguei). Às 17,30 horas,não tinha quase ninguém no parque. A área do lago estava vazia.

Você deve estar se perguntando: como eu poderia saber de todos os fatos ocorridos , entre a saída do escritório e o suicídio, se eles ocorreram depois que elaborei a carta? Ora, se a está lendo, é porque, a essa altura, todos os aspectos do plano deram certo.

No local, revirei os bolsos do paletó e da calça, apontei para a têmpora direita e disparei.Outras duas providências fundamentais para que nem se cogitasse a tese de suicidio já havia adotado anteriormente. A primeira delas foi a escolha de um dia e noite chuvosas. Antes de sair do escritório, passei sabão em pasta em toda a mão direita e até a altura do pulso, local que não seria coberto pelo punho da camisa de mangas compridas. Assim, os residuos de pólvora que costumam ficar na mão de quem utiliza arma de fogo ficariam presos à crosta de sabão, que posteriormente seria diluida pela água da chuva, eliminando, assim, qualquer vestígio de que eu mesmo possa ter disparado a arma.

O desafio maior, porém, estava em como dar sumiço ao revólver. Alguém tem condições de se matar e depois esconder a arma com que o fez ? Mais uma vez- e de maneira fundamental- minhas leituras de histórias policiais deram-me a solução. Lembra-se do conto O caso da ponte, protagonizado pelo grande Sherlock Holmes? Fiz o mesmo que a mulher da história: peguei uma corda, de cerca de um metro e meio, e, em uma das extremidades, amarrei, com seguros nós, o revólver. Na outra , com os mesmos cuidados, atei uma barra de ferro, de dois quilos. Deixei a barra suspensa sobre o lago, na mureta lateral da ponte; apontei a arma para a cabeça e atirei. Naturalmente, depois disso, larguei o revólver que, arrastado pelo peso do ferro, caiu no lago e afundou com ele.

Tomei dois cuidados adicionais: presa à barra de ferro, por arame inoxidável, e envolta em plástico, deixei a cópia desta carta. A corda que serviu para amarrar a arma e o ferro é de nylon. É preciso que, nem a corda, nem o invólucro da carta, apodreçam no fundo do lago. Devem ser encontrados intatos, no caso de você precisar de mais provas, além do original dessa carta, de que me suicidei. Conto sempre com a possibilidade de que, impotente para solucionar um caso de grande repercussão, a polícia, para dar satisfação à opinião pública, faça de bode expiatório alguns desses infelizes que costuma prender todos os dias. É prática mais comum do que se imagina e eu jamais poderia aceitar que isso ocorresse.

Por fim, minha querida, chegou a hora de responder à maior das perguntas que, sem dúvida, você deve estar se fazendo: por que engendrei trama tão complicada para fazer meu suicídio parecer um assassinato?

Lembra do mausoléu, que construi para última morada, com o qual , a exemplo dos faraós, decidi precaver-me do esquecimento póstumo, e que me custou tanto esforço e dinheiro? Lembra que é proibido o sepultamento de suicidas no cemitério da congregação?

A arma do crime


- Ele era um homem grande, 1,80 metro de altura, pesava quase 100 quilos. Mas o tiro jogou-o a dois metros de distância, após despedaçar-lhe metade do crânio. Uma coisa horrível.

Quando foi fazer pesquisa naquela clínica, o jornalista estava apenas querendo obter informações para uma reportagem especial sobre o mal de Alzheimer, doença degenerativa do cérebro, que faz a pessoa, aos poucos, ir perdendo a memória e que tem uma característica diferente das moléstias semelhantes: o paciente esquece fatos recentes, mas lembra-se perfeitamente dos antigos.Na fase aguda, não consegue,por exemplo, lembrar-se de que almoçou, mas recorda-se de uma ceia de Natal da infância.

O jornalista e a diretora da clínica já haviam conversado sobre isso tudo.Escolhera aquela clínica por abrigar milionários ou personalidades das artes, política, negócios, etc, vítimas do mal. Isso daria um tempero especial à matéria, que revelaria os efeitos da doença no comportamento de quem, antes, comandara ou seduzira as massas.Firmara o compromisso de não revelar nomes, apenas casos.

A garantia do anonimato foi o que fez a diretora alongar-se sobre a ficha de determinados pacientes: a ex-atriz que, agora, zanzava pelo jardim repetindo dois ou três versos de Shakespeare:o antigo locutor de eventos esportivos que não falava mais; o ex-governador de Estado hoje apenas fazendo o que lhe ordenam ( comer, beber, andar), etc.

Alongava-se, naquele momento, a franzina médica no caso que parecia mais fasciná-la e que, como o jornalista saberia depois, fascinava a quem dele tivesse conhecimento: o do empresário que matara o único filho pensando tratar-se de um urso.

- É a prova de que nem todos os pacientes de Alzheimer podem ser mantidos em casa. A partir de certo estágio, suas atitudes tornam-se imprevisíveis; a única realidade presente é a do passado.Agem como se vivessem décadas atrás. Para evitar maiores danos, para eles e para quem com eles convive, o melhor a fazer é interná-los. Infelizmente, neste caso, a decisão só ocorreu após a tragédia.

E a diretora descreveu o assassinato , que não chegou a conhecimento público em razão da notoriedade de seu autor, um homem que não só detivera notável força econômica , mas, também, a inevitável influência política decorrente dela. Segundo os jornais da época, fora acometido de um irreversível dano neurológico apos tomar conhecimento da morte do filho em um assalto. Mas a médica sabia muito bem de toda a história, pois fora quem providenciara, às altas horas de determinada noite, a internação do assassino, aconselhada pelo advogado da família e autorizada por sua nora, logo após o encontro do corpo da vítima, com a cabeça estraçalhada por uma bala de grosso calibre, e do assassino, ainda com a arma quente nas mãos.O crime ocorrera na fazenda onde o empresário morava, com o filho e a nora, desde que o Alzhemier fora diagnosticado. Foi surpreendido na varanda da casa-sede, por um empregado, acordado pelo estampido. Balbuciava, de olhos fixos no portão coberto de folhagens: " Perfeito! Perfeito".

Até os policiais,que atenderam a ocorrência, acostumados a cenas de assassinatos, ficaram impressionados com o estrago causado pela arma do crime. Pudera. Tratava-se de um fuzil tcheco CZ 550, usado para matar elefantes, com capacidade para atingir alvos a um quilômetro de distância. A potência do impacto seria exagerada até para um urso , imagine,então, para um homem, que estava a pouco mais de 50 metros.

Os testes de balística, residuográficos, depoimento do empregado e demais circunstâncias não deixavam dúvidas de que o autor do disparo havia sido, mesmo, o empresário.

O assassinato havia ocorrido há mais de 10 anos, mas a médica relatava-o como se fossem 10 dias.Sua ênfase narrativa despertou no jornalista a curiosidade do reporter policial do início da carreira.

- É possível conversar com o paciente?

Era, sim- respondeu a diretora-clínica. Desde , é claro, que não fosse uma entrevista. Nada de gravador, nem anotações, portanto.

O homem que estava ali, ao lado do jornalista aparentava pouco os 65 anos de idade. Os cabelos grisalhos e ralos, as rugas,mais acentuadas na testa, dando-lhe uma permanente expressão de perplexidade, tornavam-se insignificantes, como sinais de velhice, ante os fortes músculos dos braços e pernas, o tórax proeminente, que nem a barriga, já um tanto rotunda, conseguia camuflar.Tudo isso espalhado por algo que o jornalista calculou entre 100 quilos e 1,90 metro de altura.

O enfermeiro que os apresentara mantinha-se alguns metros afastado, atitude mais ditada pela discreção do que por cautela. A diretora clínica explicara que o paciente era tranquilo, calado a maior parte do tempo.Quando disposto a conversar, detinha-se quase sempre em um assunto único: caçadas. Seu lugar preferido na clínica era aquele banco sob uma mangueira e perto do lago em cujas margens perfilavam-se os chalés dos internos.

- A moça ainda não apareceu?- perguntou, sem olhar para o jornalista, quebrando o silêncio que se seguiu à apresentação.

O jornalista já esperava a pergunta, alertado pela diretora clínica de que o paciente a fazia com frequência, sem esperar resposta. Havia uma opinião generalizada de que se referia à nora, com quem vivera por muitos anos até o dia da tragédia.Compreensivelmente, a mulher nunca mais aparecera desde o dia da internação. Sabia-se que vivia modestamente com parentes, em uma cidade do sul.Casada em regime de separação total de bens, a mulher nada herdara com a trágica morte do marido.A manutenção do fazendeiro na sofisticada clínica era feita por um fundo financeiro que administrava suas empresas desde o diagnóstico do mal de Alzheimer.

- Então quer dizer que o senhor é jornalista? Gosto de falar com jornalistas. Vocês também são caçadores, à sua maneira.A única diferença é que vocês se contentam em descobrir a caça, nós, não: descobrimos e a abatemos.

- Gostaria que me contasse alguma de suas histórias de caça- perguntou o jornalista, ciente de que estava sendo movido pela morbidez de fazê-lo narrar a história do urso. Mas o paciente não parecia disposto a isso. Discorreu sobre uma série de façanhas: abates de jacarés e aves no Pantanal; de antílopes e felinos em savanas africanas, sempre como se tivesse referindo-se a fatos contemporâneos.Era o Alzheimer em seu alto grau- pensou o jornalista. Não se recorda do café da manhã, mas detalha caçadas de décadas atrás.As narrações eram enriquecidas com informações técnicas sobre cada tipo de caça, de armadilha, de tocaia, de armas. O jornalista resolveu forçar-lhe a memória.

- O senhor já caçou ursos?

- Apenas um.

Surpreendido pela rápida resposta e com receio de que alguma pausa no diálogo, por menor que fosse, levasse novamente à obscuridade aquela lembrança , lançou a segunda pergunta:

- Como foi essa caçada?

- Não foi uma caçada. Foi uma necessidade.Ele era uma ameaça. Aparecia toda madrugada na fazenda. Ousado. Vinha até o portão da sede.Era grande. Se atacasse um de nós, não teríamos a menor chance.

-Mas existem ursos no Brasil?

- Claro que não. Isso não é animal de região quente. É de regiões frias. Esse que matei deve ter escapado de algum zoológico, ou circo. Não sei que diabos viu na minha fazenda para ficar zanzando por aqui.Mas ele não contava com minha boa mira, nem meu poderoso rifle. Nós estávamos prontinhos para ele. Foi um tiro só. Perfeito.

Insensata? Inoportuna? Desumana? Mórbida? Oportunista? O jornalista não se preocupou em definir a pergunta, quando a fez, à queima roupa:

- O senhor tem filhos?

- Tenho. Apenas um. Já é um homem, casado. Um bom sujeito, com o terrível defeito de não gostar de caçar. Pelo menos de caçar animais, se é que você me entende.

O empresário, que o tempo todo falava sem fitar o interlocutor, mantendo o olhar em um ponto indefinido no lago, agora encarava o jornalista, com ar matreiro.

- Não pode ver um rabo de saia.Não sei a quem puxou.Deus sabe que

não foi a mim. Enquanto sua mãe viveu, fui homem de uma mulher só.E até hoje tenho dificuldade para fazer novos relacionamentos. Acho que por causa da memória da companheira. Mas ele, não. A esposa fica aí e ele sai à caça. Nem se dá ao trabalho de disfarçar. Também, esta moça não reclama, parece que nunca desconfia de nada. Se eu aprontasse com a patroa metade do que meu filho apronta com a mulher dele, acho que a velha me quebrava a cabeça.Às vezes até que dou razão ao rapaz.Pude ser fiel a vida inteira porque tinha outro amor: as caçadas. Meu filho não tem. E todo homem precisa de vários amores. Ele os busca em outras mulheres.Não me importo com isso. Só me importava até umas semanas atrás.

O paciente calou-se, reforçando o suspense que a própria frase sugeria.

- Por que? Interpelou o jornalista.

- Por causa do urso, ora! Chegando toda madrugada, bêbado, ele ia ser uma presa fácil do bicho! Mas eu resolvi o problema. Um tiro só. Perfeito.

O enfermeiro aproximou-se e o jornalista entendeu que a conversa deveria ser encerrada. Ao vê-lo , o paciente indagou:

- A moça ainda não apareceu?

O enfermeiro sabia que não precisava responder. Qualquer reposta seria esquecida pelo paciente meia hora depois e ele certamente a repetiria a questão ao primeiro interlocutor que aparecesse. Pegou-o suavemente pelo braço direito e ambos caminharam em direção ao prédio principal da clínica.

.

- E então? O que achou?

O tom de voz da diretora-clínica , assim que o jornalista entrou de novo em seu escritório, trazia aquela ansiedade de quem quer saber se o presenteado gostou do que acabara de desembrulhar.

- É, realmente, uma história fascinante. Difícil ficar indiferente ouvindo um pai contar como matou o próprio filho, achando que, ao fazer isso, salvou-lhe a vida.

- Como eu previa, este caso atingiu forte sua sensibilidade. Imagine, então como afetou a nós, que o testemunhamos desde o início.

- Não tenho dúvidas de que deve ter sido uma experiência marcante.

Vou mostrar-lhe, agora, uma coisa que o fará emocionar-se mais ainda.

Minutos depois, o jornalista tinha, em mãos, a arma utilizada, guardada por uma década no armário maior do setor de arquivos da clínica.O fuzil sueco CZ 550, capaz de atingir um elefante a um quilômetro e matá-lo, era leve. Uns três quilos, se tanto.

- É uma arma feita para caçar elefantes, animais dos trópicos. Não pode ser muito pesada, pois seria difícil levá-la através da selva quente ou de desertos. Dispara quatro tiros, antes de precisar ser recarregada.

Diante do ar de espanto do jornalista, face àquela demonstração de conhecimentos bélicos, a diretora concluiu:

- Isso tudo me foi explicado pelos policiais, naquele dia fatídico.

Ao sair da clínica, o jornalista sabia que jamais esqueceria tal história . E, como a ratificar tal certeza, colocar um selo imperecível naquelas lembranças, lá estava, dirigindo-se lentamente ao seu chalé, de braços dados com uma enfermeira, a principal personagem da tragédia. Não resistiu ao desejo de despedir-se, movido por um impulso emocional, talvez de pena, ou agradecimento pela atenção que lhe fora dada ( quem sabe as duas coisas juntas). Aproximou-se e, antes de falar , o paciente se antecipou:

- A moça, ainda não apareceu?

Vou responder- pensou o jornalista. Não posso recusar-lhe essa atenção mínima.

- Não. Ainda não apareceu, mas logo vai estar por aqui.

E então, o homem, que havia matado o filho imaginando ser ele um urso, recolheu o olhar vago da superfície do lago; mirou no jornalista e exultou:

- Perfeito! Preciso dizer a ela que não precisa mais ficar com medo. Não há mais perigo. Já matei o urso que ela descobriu. Só precisei ficar umas quatro noites de tocaia no local que ela me indicou. É isso que eu preciso dizer-lhe.

O jornalista teve, então, a certeza de que a arma do crime, realmente, era excepcional. Tinha acabado de falar com ele.

 

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Jogo de compensações

O dia mal amanhecia quando entrou no apartamento e, em gesto que já se tornara mecânico há anos,sempre ao chegar em casa, jogou a arma e o distintivo de policial civil sobre a mesinha de centro da sala. A mesma rotina repetiu-se no ato de ligar a televisão, ir ao banheiro, tomar uma ducha, sair enrolado na toalha, pegar novamente a arma e o distintivo e colocá-los na gaveta do criado-mudo, no quarto.

Mas, há seis meses este gesto não tem testemunha, nem é repetido na mesma casa . Separara-se da mulher, com quem convivera por seis anos, e, há três meses, morava sozinho em um pequeno apartamento .

Ao retornar do banheiro, sintonizou a TV em um canal de notícias.As manchetes do dia – inevitáveis- eram sobre o atentado ao ministro da Administração Federal, ocorrido no início da noite anterior. Aproveitou a pausa para comerciais, foi à cozinha, pegou uma garrafinha de iogurte, dessas que, segundo o rótulo, ajudam na digestão . Quando retornou à sala, um reporter dava detalhes do ocorrido.

O atentado verificara-se momentos após o ministro, em veículo do ministério, sair de sua residência para um compromisso oficial. Quando o motorista freou, antes de entrar na avenida em frente da moradia, um homem aproximou-se e efetuou vários disparos, à queima roupa. Tudo muito rápido . O vigilante da casa mal tinha acabado de fechar o portão, quando presenciou a cena. Correu até o local, mas o atirador teve tempo de escapar por um bosque nas imediações.

Socorridos, instantes após o alarme do vigilante, o ministro e o motorista foram levados para o hospital. Atingido na coxa esquerda e na mão direita, o ministro,que estava no banco de passageiros, escapou do atentado com vida, mas o motorista não teve a mesma sorte. Um dos disparos acertou-lhe a cabeça e ele morreu ainda na ambulância.

Estivesse ainda casado e o fato seria compartilhado com a mulher. Ela viria da cozinha com duas canecas de café fumegante, dar-lhe-ia uma, sentar-se-ia a seu lado e os dois, sorvendo lentos goles, assistiriam ao noticiário.

Sua noite fora agitada.Esticou-se no sofá, fechou os olhos e um leve torpor invadiu-lhe o corpo. Não dormiu. Estava cansado, mas não tinha sono.Voltou a olhar a TV quando ouviu anunciarem entrevista do delegado da Polícia Federal encarregado de investigar o crime.

- Ainda é cedo para qualquer conclusão e algumas pistas que temos manteremos em segredo, para não atrapalhar as investigações.

O mesmo papo de sempre, pensou.Na maior parte das vezes, a autoridade encarregada de um caso de repercussão falava,nas entrevistas, de informações que não podiam ser divulgadas. Na verdade, não deveriam ter pista nenhuma. Mas precisavam dar alguma satisfação pública, sem demonstrar incompetência.

- Ao que tudo indica, o atirador agiu sozinho.Usou uma pistola automática- explicava o delegado.

- O senhor tem idéia da motivação do atentado?- indagou um reporter.

- Sobre isso, não temos opinião formada, respondeu o delegado, encerrando a entrevista.

Corte para a redação.O apresentador do noticiário ao lado de um especialista em segurança. O que levara o agressor a atirar pela da janela do motorista? –indagou o jornalista.

- Tudo indica que ele vigiou, por algum tempo, a casa e a rotina do ministro. Deve ter notado, entre outras coisas, que o ministro , ao invés de ficar na banco de trás, como é mais frequentre, sentava do lado do motorista. Deve ter observado, também, que, após percorrer a faixa de terreno em frente da residência, o motorista parava, antes de entrar na avenida. Segundo o primeiro depoimento do vigia da guarita da casa, sob chuva e à noite,o motorista costumava abrir parcialmente a janela, para facilitar a visão, já que todos os vidros do carro são do tipo fumê. O atirador deve ter notado tal hábito. Deduzindo, possívelmente, que o veículo tivesse janelas blindadas, o elemento, para garantir a eficiência de seu trabalho, esperou por um dia de chuva e o instante propício para se aproximar e atirar dentro do veículo.

Após a entrevista, foi para a cozinha.Precisava tomar um café puro.Enquanto aguardava a água ferver, ligou o rádio.O atentado era o prato cheio das emissoras de notícias.Ouviu argumentos de políticos, opiniões de especialistas em segurança pública; de amigos do ministro. Familiares recusavam-se a falar. E o governo? O que tinha a dizer?- indagou-se. Como a responder-lhe a pergunta, um reporter,diretamente do Palácio Central, anunciava que o presidente da República pretendia manifesta-se sobre o assunto em rede nacional de rádio e TV.

Voltou à sala. Por instantes, antes do primeiro gole de café, ficou olhando a caneca branca .Recordou-se da coleção de canecas artisticamente coloridas de sua antiga casa, uma das manias da ex-mulher. Achava-as todas bonitas, mas sempre bebia na mesma, uma verde musgo, decorada com flores amarelas.Essas pequenas lembranças da vida de casado eram frequentes, agora. Ao se enxugar após o banho, por exemplo, não tinha como não rememorar as toalhas grandes, felpudas e coloridas que ela sempre fazia questão de manter no suporte do banheiro.

Muita coisas miúdas do passado voltavam-lhe à mente em rotinas míudas do presente.Não prevaleciam a saudade ou a nostalgia, entretanto, entre os sentimentos que acompanhavam tais lembranças.A revolta era maior consequência dessas rememorações. Afinal, separara-se da mulher ao descobrir que ela o traía.Sair, pura e simplesmente de casa, fora sua única reação. Sentia que, cedo ou tarde, isso poderia ocorrer.Não era o primeiro policial traído pela mulher.

O psicólogo da Polícia, a quem recorrera em um dos momentos mais críticos de seu casamento, e a quem falara dos cada vez mais frequentres atritos conjugais, fora realista. “ Coloque-se no lugar dela. Você sai, ela não sabe se você volta ou quando volta.Há sempre um mistério em torno do que faz. Quando conversa com ela sobre o trabalho, qual o assunto? Mortes, roubos, assaltos,estupros,tiros. E vocês, policiais, nem sempre colaboram para que essa rotina estranha seja suavizada. Costumam envolver-se mais facilmente com o submundo do que com o ambiente familiar”, disse.

Ao saber da traição, seu primeiro desejo foi matá-la. Todo homem pensa assim, em tais circunstâncias, e um policial pensa mais. Não é esse o código do mundo em que convive a maior parte do tempo? Contudo, poderoso freio conteve a reação : a lembrança do filho, de três anos de idade. E depois, passadas as semanas, inevitável reconhecer: o amor que ainda sentia por ela. Hoje, as emoções antes tão fortes, diluiam-se como a fumaça de um cigarro,permitindo que enxergasse também sua culpa no processo.

Batem, agora, a porta. É o porteiro do prédio, trazendo-lhe o jornal do dia.O atentado ao ministro ganhara quase um caderno especial.Metade do espaço de uma das páginas refletia a perplexidade geral ante a escolha da vítima. Afinal, qual a importância estratégia de se eliminar alguém com tal cargo, de atribuições mais burocráticas que políticas, de um setor de orçamento baixo, com poucas chances para as já notórias negociatas? Seus titulares são,geralmente, funcionários de carreira, que só se tornam conhecidos quando indicados pelo presidente.Em que a morte de alguém assim abalaria os alicerces do poder? Que estrutura política sofreria com isso?-indagava um articulista.

Era difícil, até mesmo, encontrar alguma motivação de carater pessoal . Homem discreto, hábitos regrados , o ministro vivia com a mulher, também funcionária federal, só que aposentada. O casal não tinha filhos e a única atividade que lhes alterava a rotina, nos fins de semana, eram aquelas relacionadas a uma igreja evangélica de que eram frequentadores.” Talvez sua escolha, como vítima, deveu-se ao quase inexistente sistema de segurança de que dispunha, reduzido ao vigilante da casa”, pontificava um político entrevistado.

Largou o jornal sobre o sofá e foi ao banheiro.De tudo o que ouvira, lera e vira até então, sobre o atentado,não havia nada que lhe parecesse relevante.Muitas opiniões, poucos fatos reveladores.Na verdade, lembrava-se agora, a notícia mais importante que recebera, nas últimas semanas, fora a de que o homem com que a mulher o traíra havia se recusado a viver com ela. Na ocasião, a consequência óbvia seria ficar alegre. .Entretanto, só sentiu o refluxo de sentimentos conflitantes. Fizera sofrer a mulher e ela o trocara por outro, fazendo-o sofrer, também. Ela tivera,porém, seu revés, sendo rejeitada pelo amante.Este jogo de compensações precisava ser concluído decidiu, na ocasião.

O som subitamente elevado da TV, coisa típica das chamadas que antecedem informes extraordinários, despertou-o, novamente, do estado reflexivo:

- Entramos em rede nacional para pronunciamento de sua excelência, o presidente da República.

Semblante carregado, esforço no olhar e nos gestos para sublinhar a gravidade do momento, o chefe da Nação falou.

- Estou aqui para manifestar , em meu nome e de todos os cidadãos, o repúdio ante o brutal atentado a um ministro de Estado , crime que atingiu a todos nós, cidadãos de bem, que lutamos por uma sociedade progressista e pacífica. Se os agressores pretendiam desestabilizar o Governo na pessoa de um de seus menbros, fracassaram duplamente em seu intento.O ministro sobreviveu e nós não recuaremos um só milímetro em nossas ações públicas. Não pouparemos, também, esforços para descobrir e punir os autores diretos e indiretos de tão covarde agressão.

Desligou a TV. Não queria ouvir mais nada. O pronunciamento presidencial só o estava irritando. Como autor do atentado, sabia que não fracassara.Seu objetivo não era desestabilizar nenhum governo, era concluir o jogo de compensações de sua tragédia pessoal. E seu alvo não era o ministro. Era o motorista, com quem a mulher o traíra.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Um esqueleto na ermida

Um policial pode solucionar crimes baseado em interesses meramente profissionais.A cada caso bem conduzido, mais pontos no prontuário, importantes para promoções futuras. Ou, pode atuar com a intenção de fazer justiça, levar os culpados à punição.Há aqueles que, solidários às vítimas, fazem de seu trabalho uma forma de compensá-las das perdas, materiais ou afetivas .


Ao delegado Drion, entretanto, nenhuma dessas motivações tinha relevância.Para ele, um caso deve ser solucionado simplesmente porque , continuando obscuro, contraria a ordem natural das coisas. “ Crimes não resolvidos são como quadros tortos na parede, os quais,permanecendo assim, causam mal-estar permanente”, costumava dizer.

O caso do esqueleto, encontrado próximo das ruínas da ermida do Guaibê, foi uma das demonstrações mais evidentes de que Drion levava tal princípio às últimas consequências.

A ossada fora achada, casualmente, por um dos estudantes que participavam de mutirão de limpeza do sítio histórico, situado às margens do canal que separa os municípios de Guarujá e Bertioga, no litoral  de São Paulo.

Quase completo,o esqueleto de pronto suscitou a dúvida: assunto de polícia ou de arqueologia? O local onde fora encontrado , embora tombado pelo serviço de patrimônio histórico estadual, estava ao abandono e permitia livre entrada.Aliás,o mutirão de estudantes, visando à roçagem de mato que cobria as ruínas e os acessos, fora iniciativa de uma organização não-governamental, à revelia das autoridades estaduais.

No século 16, a ermida tinha uma capela onde, segundo registros históricos, o padre José de Anchieta, patrono do Brasil, celebrava missas, após ser liberto pelos índios rebeldes da Confederação dos Tamoios. O sítio histórico é composto, também, pelo antigo Forte São Felipe, construído pelos espanhóis, à época do Tratado de Tordesilhas, para conter invasões estrangeiras naquele ponto da costa.

Sem vigilância,entretanto, toda a área vinha servindo, há anos, de esconderijo e abrigo para marginais, desocupados e vagabundos. Nos últimos anos,alguns corpos foram encontrados nas matas próximas , o que enquadrava o local, também, como ponto de “desova” de vítimas de assassinatos.

Era a primeira vez, porém, que se achava um esqueleto ali.O delegado , primeira autoridade a comparecer ao local após a descoberta, notando que a ossada estava quase toda oculta por terra e entulho, achou melhor chamar uma equipe do centro histórico municipal.Seriam necessárias escavações e a presença de gente ligada à arqueologia oficial evitaria aborrecimentos burocráticos e legais no futuro.

O solo arenoso, coberto por fina camada de vegetação, facilitou a retirada dos ossos. Junto com costelas, fêmures, artelhos, vértebras e o crânio, vieram, também, trapos e pedaços do que pareciam ser cordas , tecidos e madeira. Por decisão unânime, ao invés do Instituto Médico Legal, o esqueleto foi enviado ao laboratório de arqueologia da Universidade Paulista.

Duas semanas depois, Drion foi chamado. Finalmente teria informações técnicas sobre o esqueleto , disse-lhe, ao telefone, o diretor do laboratório de arqueologia. Coisa que o instituto médico legal, da polícia, teria feito em 24 horas, pensou o delegado assim que desligou o aparelho.

- Como prevíamos, trata-se do esqueleto de um homem branco que viveu 500 anos atrás.Provavelmente um português, soldado, padre, marinheiro ou comerciante, o tipo de gente que habitava aquelas paragens no século 16.

A partir daí, o professor, por uns 10 minutos, desenvolveu uma minipalestra sobre os achados históricos no sítio do Guaibê. E fez questão de mostrar uma exposição deles, em sala anexa.Entre as peças, dois esqueletos, um adulto e uma criança..

- Os dois são de índios e da mesma época que o esqueleto do branco. Quando foram encontrados, nos anos 60, estavam quase nas mesmas condições que ele.Guardamos os objetos encontrados juntos.Observe que são em maior quantidade, pois era costume índio sepultar os mortos com seus pertences. A nova descoberta será importante para nossos estudos da área porque se trata do primeiro esqueleto de origem européia achado ali.

E , enquanto falava , mostrava pedaços de tecidos, de cordas , fibras vegetais, cerâmicas quebradas, dois ossos de animais, ponteagudos, pontas de flechas; miçangas que deveriam ter feito parte de colares ou braceletes, achados juntos aos esqueletos indígenas.

Ao policial, as explicações foram mais do que suficientes. O caso, enfim, não era seu; era para os doutores.

O professor o levou, novamente, ao laboratório, onde, apontando o esqueleto sobre a mesa,disse, com certa malícia no olhar

- Se o senhor vivesse no século 16, talvez o caso de nosso amigo, aí, o interessasse.Ele foi assassinado.

Ante o olhar espantado do policial, o professor explicou:

- Veja, nas vértebras e na coluna, estes riscos . São sinais típicos de ferimentos por objetos cortantes.Como policial, o senhor sabe que quando alguém leva uma facada ou punhalada, à altura do coração ou pulmões, as armas acabam atingindo ossos do tórax, produzindo marcas indeléveis.Nosso amigo aí levou vários golpes, a julgar pelo número de marcas.



Não eram passadas 48 horas após a visita do delegado, e o diretor do laboratório de arqueologia recebeu ofício da Secretaria de Segurança Pública, solicitando permissão para que uma equipe de peritos fizesse fotos e coletasse amostras de todo o material que fora apresentado a Drion. E não se passaram 24 horas após o atendimento ao pedido até que aparecesse na Universidade uma equipe da perícia policial,com toda sua parafernália.

Fotografaram não só o esqueleto recém-encontrado,como, também,os outros dois da exposição anexa, assim como os objetos com eles achados, dos quais, também, recolheram amostras para análises laboratoriais.

E não transcorreram mais de 10 dias até que o delegado Drion telefonasse para o professor, pedindo-lhe uma data para visita.

A curiosidade do professor fez com que abrisse espaço em sua agenda em menos de 48 horas.E na data e horário estipulados, lá estava o delegado, na sala do acadêmico,desta vez falando mais do que ouvindo.



- Quando sai daqui aquele dia, entre todas as palavras que o senhor disse, uma ficou ecoando em meu cérebro : “ assassinado”. Perfeitamente compreensível: sou policial há 30 anos e tenho como que um reflexo condicionado diante de termos ligados diretamente à minha profissão.Este mesmo reflexo é responsável pelo fato de, após ouvir a palavra, começar a estabelecer conexões, as quais só são possíveis se existir o que chamamos de pontas. E, neste caso, há várias .

O professor, atento, achava curioso que o delegado se referisse ao assunto como se fosse um caso policial, pura e simples, enquanto ele o via como mero motivo para uma pesquisa científica Algo lhe dizia que aquele diálogo caminhava para ser como dois trilhos de trem, que nunca se encontram.

- As pontas - continuava o delegado- estavam tanto nos achados de agora, como nos dos anos 60, na sala de exposições. Quando o senhor falou em assassinato, comecei , a analisar tudo o que vi como se estivesse em uma cena de crime. Ao estabelecer relações, constatei uma primeira convergência: pedaços de tecidos encontrados no esqueleto europeu eram semelhantes aos achados junto aos ossos do índio adulto.

A essa observação, o professor permitiu-se interromper.

- Não sei onde o senhor que chegar, delegado, mas talvez possa estar se precipitando ao fazer qualquer relação. Naquela época e local, os índios estavam aculturados,viviam junto dos brancos. O fato de possuirem tecidos semelhantes não seria tão surpreendente assim.

- Concordo, professor. Mas nunca tiramos conclusões com base em uma relação,ou na primeira das relações. Quase sempre os dados iniciais não são conclusivos, mas acabam servindo como pontos de partida ou inspiração para isso. Nesse caso, os tecidos serviram apenas como inspiração.Aquela coisa intuitiva, para a qual não temos explicações.

Decidiu-se, então, analisar, no microscópio, as imagens dos dois ossos ponteagudos, semelhantes a extremidades de lanças ou punhais, do rol de pertences do índio adulto, e as fissuras nos ossos do esqueleto europeu. A descoberta foi simplesmente espantosa: uma das lâminas encaixava-se milimetricamente nos sulcos observados nos ossos do tórax do homem branco.

- A conclusão é simples, professor: quem matou o nosso amigo branco foi o índio ,cujos restos estão na sala ao lado.

Para o delegado Drion, crimes não resolvidos são como quadros tortos na parede, que causam permanente incômodo ao olhar. É preciso colocá-los na posição correta. Mesmo passados 500 anos.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Justo hoje





Pela vidraça frontal, ele vê o policial sair da viatura e cruzar a rua.” Vai entrar aqui”, imagina e, dirige-se ao banheiro.

Entrara no bar há uns cinco minutos, 10 após a morte de seu chefe.Os outros cinco gastara andando, rápido, até ali, a partir do escritório, local da tragédia.

Conhece o bar. Fica sempre vazio àquela hora da manhã. Desde sua entrada, à exceção dele, apenas o barman está no recinto, limpando uns copos.

È ali que pretende raciocinar sobre o que acontecera há pouco. Tomar decisões.Sabe que, a partir de agora, sua vida jamais será a mesma.Está entre ser um presidiário ou um foragido. Ao entrar na garganta do chefe, o estilete de cortar papéis matara, também, qualquer aspiração sua a uma existência comum, de sonhos a realizar; de realidades com que sonhar.

No banheiro, tenta lembrar o que aconteceu. Ajuda-o o controle das emoções, o que,aliás, é a mais forte característica de sua personalidade. Incontáveis foram as vezes, em seus 30 anos de vida, em que adotara atitudes serenas, enquanto um vulcão revolvia-lhe a alma.” Sangue de barata” é o nome que sua ex-mulher dá a essa sua incapacidade de “chutar o pau da barraca”, como se diz por aí.

Mas ele é assim e a vista não se lhe toldou de vermelho nem mesmo no instante em que a lâmina soltou-se daquela carótida, causando, com sua queda, um esguicho de sangue, Quando o corpo rotundo do chefe tombou sobre o tapete, nem isso permitiu que as emoções tomassem-lhe o lugar dos pensamentos.Nada que o levasse a priorizar uma grito, uma correria incerta, um apelo. Aproximou-se do corpo, certificou-se da morte, abriu a porta da sala, saiu,fechando-a atrás de si, Atravessou o corredor entre os cubículos nos quais abrigavam-se os demais funcionários; chegou ao corredor externo e só acelerou os passos na escada, que preferiu ao elevador. Afinal, o escritório fica no quarto andar e, pelos degraus, era mais fácil , rápido e seguro atingir a rua, antes que se descobrisse o ocorrido.

Entre os funcionários, apenas a secretária entrava com frequência na sala do chefe e,mesmo assim, se chamada. Era quase certo que, apenas passados uns 15 minutos sem ser acionada, ela resolvesse falar-lhe pelo intercomunicador, para transmitir algum recado. E, ante o inevitável silêncio, resolvesse ver o que estava acontecendo.

Teve tempo, assim, para , sem ser barrado,chegar à rua e, em seguida, ao bar, que já conhecia de inúmeros happy hours e almoços. É claro, não pretende esconder-se ali. É, digamos, uma pausa estratégica, para pensar. E agora o faz dentro do banheiro.Teria o policial entrado? Ou apenas atravessou a rua? Teria sido movimentação de rotina ou, como centenas de outros colegas, àquela altura, já estava atendendo ao alarme de assassinato?

Jamais planejara matar o chefe.Mas não podia negar as vezes em que isso lhe passara pela cabeça nos cinco anos de firma.Porque o homem era destes, não tão raros , que sentem um prazer sádico em humilhar subordinados.Com ele, fazia-o, de preferência, diante dos demais funcionários.E não deixava passar mais de uma semana entre uma humilhação e outra.A cada descompostura; a cada sobrecarga de trabalho desnecessária , o sangue fervia-lhe nas veias, como ferviam, no seio da montanha, lavas de um vulcão, cuja erupção, entretanto, cuidava de evitar.Aceleravam-se as batidas do coração, as têmporas latejavam, mas o semblante era de serenidade.Contida e humilde serenidade.Ajudava-o, é claro, o temperamento “ sangue de barata”, com o providencial reforço da necessidade do emprego.Ninguém, acreditaria, porém que não odiava o superior.

E o déspota tinha que desancá-lo justo hoje, quando dirigira-se ao trabalho ainda tendo a ecoar, no cérebro, as palavras da mulher,pedindo o divórcio.Chegado ao escritório,nem mesmo digerira a revelação que desestruturaria sua estabilidade familiar e o chefe já o chamava na sala, onde, nos cinco minutos seguintes, em meio aos sempre impressionantes acessos de fúria,mostrou-lhe o quanto o considerava incompetente, desprezível e sem futuro.

E também, justo hoje, resolveu retrucar. Contido, humilde, mas resolveu.Tão inesperada pareceu ao chefe a reação que este, após ouvi-lo , esbugalhou os olhos, como alguém à beira de uma apoplexia,rodeou a mesa e, à falta de uma palavra que definisse sua ira ante tanta insolência de um subordinado, empunhou o estilete de cortar papéis, aproximando-o do rosto do funcionário.

- Não sei onde estou com a cabeça que não…

A frase não terminou, pois , em um gesto instintivo de defesa, o subordinado segurou-lhe o punho, fazendo, sem querer,com que a lâmina virasse em sentido contrário.O impulso do corpanzil do chefe e a inércia cuidaram do resto.

Um acidente.Mas alguém acreditaria nisso? A descrença quanto a essa possibilidade foi que o fez pensar em fugir do prédio, antes de mais nada.Só ele e o chefe sabiam o que ocorrera naquela sala, de onde apenas um saiu vivo, cruzando o corredor entre cubículos . Maior suspeito de assassinato, impossível. Breve caçada humana, inevitável.

Interrompe a rememoração. Precisa saber se o policial entrara no bar.Por sorte, o conjunto de sanitários em que se esconde dá frente para o salão. E não tem porta: a divisória é uma cortina de tiras plásticas. É por entre elas que vê o policial. Aparenta tranquilidade e diz alguma coisa ao barman.

Refere-se o diálogo à sua presença? Se for, não há outra alternativa senão entregar-se. Fatalista, abre a porta do banheiro e sai, a tempo de verificar que o guarda , após ouvir, com expressão atônita, a mensagem que lhe era transmitida pelo radiocomunicador preso ao peito, corre para a porta da frente.

Como que contagiado pela pressa do policial, também dirige-se rápido ao salão.E vê, na TV ligada há pouco pelo barman, a notícia de que Nova Iorque vive o caos e o pânico. Choques de dois aviões haviam transformando em um monte de escombros fumegantes as torres gêmeas do World Trade Center. Onde ficava o escritório do qual saíra, há 15 minutos, fugido de uma fatalidade.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A última dose

Final de tarde e você está na varanda do apartamento do segundo andar, sentado em uma cadeira de praia, tomando uisque com gelo, cumprindo um ritual diário de alguns anos,que envolve, também, a assistir , pela TV, a famoso programa de debates esportivos.

Você já tem 45 anos e,a não ser pelos problemas de visão, que o incomodam há alguns meses, é um homem saudável. Atlético, pode-se dizer, consequência de certa obsessão por exercícios físicos durante quase duas décadas,a partir dos 18 anos.

Não fosse pela crescente miopia, que o faz mais ouvir do que assistir ao programa, e você estaria, agora, na praia,a duas quadras dali,correndo,nadando,jogando futebol ou apreciando a paisagem. E que paisagem! Mar verde, areia macia , céu azul são o de menos ante corpos femininos dourados apenas emoldurados por sumários biquinis .

Você,é claro, só estaria olhando as mulheres, sem os atuais óculos de lentes grossas, as notórias fundos de garrafa, que tanto o incomodam . Não pretende, a essa altura da vida, arruinar mais um casamento com outra aventura.Isso significaria ficar mais uma vez sem casa, sem sustento e sem oportunidade de recomeço. Com o agravante de que, nesta idade, sem profissão, nem aposentadoria e ainda por cima, fraco das vistas, as chances de sucesso seriam, no mínimo, mínimas

Houve um tempo em que recomeçar não era problema ( dai não resistir às tentações). Garoto de praia, não tinha a menor dificuldade em aproximar-se de seus alvos: mulheres de meia idade, mal amadas, ou não amadas, em boas condições finaneiras.Ontem, como hoje, um produto com muita oferta no mercado das relações afetivas.Elas ficam na praia,olhos gulosos para os apolos das ondas.As melhores, segundo sua avaliação abalizada,são as casadas, sustentadas pelos maridos. São menos exclusivistas porque têm muito o que perder. Querem de você a juventude, o corpo sarado, o romance excitado pela clandestinidade. E lhe dão boa vida: roupas, perfumes, dinheiro. Chegou a ganhar uma motocicleta de uma delas. E o que tinha de fazer? Em suma, limitar-se a ser bonito e gostoso.

A proporção em que ia ficando mais velho e a concorrrência dos novos garotões,maior, você foi fazendo concessões. Até mesmo morar junto, simulacros de casamentos.

Você lembra de dois casos especiais, mais complexos e duradouros, mas, também,mais rentáveis. O primeiro foi a advogada, solteira e bem sucedida da capital.Que,além de tudo, era bonita, apesar de ter o dobro de sua idade, na época. Conviveram por um ano, em aconchegante apartamento da península. Pena que a mulher não quis ser compreensível quanto ao fato de você, nas horas em que ela batalhava a vida nos fóruns, apreciar física e metaforicamente as menininhas douradas da areia.E separaram-se, ela cheia de ódio, você,cheio de nada.

Mas recomeçar não era difícil para um garoto dourado.E poucas semanas depois, veio o caso mais complicado: Ivete. Você não a esquecerá enquanto houver uma cantora homônima, de sobrenome Sangalo, dominando as paradas de sucesso e os programas de TV.

Era casada, com rico empresário da capital, que , nos verões, preferia ficar analisando os balanços da empresa a acompanhar a esposa e a filha, de cinco anos, ao litoral.Tanto pior para ele e melhor para você, a quem ela escolheu para preencher suas carências afetivas. Ivete,meio gordinha, meio baixinha, meio dentuça. Quem estava prestando atenção nisso, enquanto os balanços, cuidadosamenrte cevados pelo marido no planalto, lhe permitiam uma vida de prazeres no litoral?

Ivete, generosa.Ia além das boas roupas, perfumes, geringonças eletrônicas e mesadas das conquistas anteriores.Pagava-lhe o alugel de um pequeno,mas bem montado apartamento na orla e atingiu o cume da gentileza presenteando-o com um desses automóveis compactos, que você usava para impressionar as namoradas mais jovens quando, tanto o verão,quanto Ivete, encontravam-se ausentes.

Ivete, apaixonada. Um dia apareceu, exultante, dizendo que havia pedido divórcio ao marido, para viver com você. Ivete, maluca, abrindo mão de pensão , indenizações, propriedades, enfim, de tudo o que pudesse, segundo ela, retardar o tempo em que, imagine, vocês dois passariam a viver apenas um para o outro. Uma linda história de amor.

É você, é claro, não quis mais Ivete.Que, alguns anos depois, morreu, pobre, em algum lugar do interior do estado.

- Vou pegar o copo.

A empregada, jovem de 20 anos, interrompe suas recordações. Pontual e rotineira, faz isso há uns dois anos , desde que foi contratada. Serve o uísque ás 18 horas, pega o copo às 18,15, e vai embora às 18,30. Comportamento que ficaria mais adequado para uma criada velha e não para uma jovem.

- Dona Cida telefonou e disse que vai demorar mais uma meia hora.

Cida, sua atual e- você tem alguma dúvida?- definitiva mulher.Conheceu-a em um momento- para seus parâmetros morais- difícil.Já estava com 35 anos e a concorrência dos novos garotos dourados era imbatível. Quando foi atraída por seu ainda remanescente charme, em uma barraca de praia, Cida beirava os 50 e já era viúva de um major do Exército. Trazia de renda o percúlio militar e, de patrimônio, este apartamento de dois dormitórios, a duas quadras do mar, em que hoje moram.

Cida é o seu pecúlio.Tranquila, metódica, agora sessentona,mas não parecendo. Sabe como é:um dia, ginástica, em outro, como hoje, cabeleireiro, e assim por diante. A vida só seria melhor se sobrasse mais dinheiro para coisas do tipo contratar, para ele, um bom plano de saúde.Assim não precisaria, por exemplo, ter de consultar o oculista da clínica municipal. Nas duas vezes em que foi lá, o sujeito limitou-se a lhe receitar óculos mais fortes.Ele precisa é de um bom especialista. Qualquer dia destes, vai tocar no assunto com a Cida.

- Queria aproveitar que Dona Cida não está para conversar umas coisas com o senhor.

De novo a empregada.Você não tem a menor idéia do que ela poderia conversar consigo. Afinal, nunca lhe dirige mais do que meia dúzia de palavras. Natural. Quem resolve as coisas na casa é a esposa. E que história é essa de " aproveitando que dona Cida não está"?

- Hoje é meu último dia no emprego. Estou pedindo demissão.

Sem problemas, você pensa, após recuperar-se da rápida surpresa ante a revelação.

- Na verdade, quando comecei a trabalhar aqui, há dois anos, não precisava deste emprego. Tinha herdado alguma coisa de meu pai, falecido naquela mesma época.

Por que essa menina vem me encher o saco com sua história? você se pergunta, já preparado para mandá-la entender-se com a Dona Cida.

- Portanto, essa é a última dose que lhe sirvo, depois de dois anos fazendo isso todos os dias, pontualmente, ás 18 horas.

E daí? . Amanhã contratamos outra empregada e as coisas continuam exatamente como antes. Como se tivesse lido sua mente, a jovem continua:

- Não estou me referindo ao uísque. Estou falando da imperceptível dose de mercúrio que eu tirava de termômetros ( a gente compra fácil,isso, em qualquer lugar) e colocava na sua bebida todos os dias. Hoje, pus a última dose. Ela completa a quantidade necessária em seu organismo para que sua cegueira torne-se irreversível em poucas semanas. Você, homem saudável, viverá muito tempo, mas não verá mais nada.

E, após dizer isso, a filha da Ivete pegou a bolsa e foi embora.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O barril de gasolina

Ele seduziu minha noiva, com seu jeito de sabidão, homem de letras. Não precisou fazer muito esforço pois, desde que ela entrara na faculdade de jornalismo, achava-se mais inteligente de que todo mundo. Eu, dono de uma pequena oficina mecânica, já não lhe servia mais.Trocou-me pelo homem dos livros.

Natural que tivesse raiva dele. Mágoa que até poderia ter passado, com o tempo, mas ele não deixava. Não dizia claramente, mas parecia sempre fazer questão de me lembrar quem era. Só consertava o carro na minha oficina. Às vezes aparecia apenas para puxar conversa. Chegou a me pagar cervejas na lanchonete da esquina.

Eu não conseguia evitar essa convivência. Não queria passar por um ressentido. Mas aquilo não me agradava; considerava humilhante.

Naquela noite garoenta, às 10 horas, estava no centro da cidade, quando o vi saindo de um bar. Cambaleava . Viu-me e a voz pastosa com que me chamou, deu-me a certeza de que tinha exagerado na cerveja. “ Preciso de um favor seu. Estou quase sem combustível no carro. Não vai dar para chegar no posto da estrada. Você não tem jeito de me arranjar pelo menos uns dois litros por aí?”

Respondi que na oficina tinha um barril de gasolina, onde a gente deixava, de molho, algumas peças,para amolecer a ferrugem. Podiamos ir até lá. Concordou imediatamente e, em poucos minutos, estávamos a caminho. Percurso relativamente pequeno. Bastava pegar a estrada do costão e descer até o bairro de baixo, onde ficava a oficina. Três quilômetros, se tanto.

Percorrido o primeiro quilometro, ele parou, bruscamente.” Barril de gasolina? Barril de gasolina? Você pensa que eu sou bobo? Pensa que não sei da  raiva que você tem de mim? Também li Edgar Allan Poe. Aliás, li mais livros em uma semana do que você em, toda sua vida.Conheço muito bem toda a obra de Poe,  principalmente  a história "O barril de amontilado", onde o assassino esconde o corpo da vítima em um barril de vinho. E não será você, um mecânico ignorante, que  me pegará nesta cilada do barril de gasolina. Pode descer do carro!”

Repetia e embrulhava  as frases, em tom acelerado, e apontava-me a porta raivosamente. Saí. Percebi, então que, apesar de termos parado no acostamento à beira do trecho mais alto do costão ( a escuridão da noite não permitia ver nada, mas era possível ouvir as ondas batendo nas rochas, 30 metros abaixo), ele não puxara o freio de mão. Compreensível: ali a estrada  era plana.Contornei o carro, pela frente. Aproximei-me de sua janela, bati no vidro, fazendo gestos de que queria dizer-lhe algo. Ele abriu. Rápido, com o braço direito, alcancei o volante, girando-o todo para a direita. Ao mesmo tempo, com o ombro apoiado na coluna da porta,empurrei o carro, como se faz na oficina, quando a gente quer movimentar um veículo sem entrar nele. O carro deslizou facilmente em direção à encosta , adernou e, logo , estrondava de encontro às rochas no fundo do despenhadeiro, antes de afundar nas furiosas águas do costão.

Minutos depois, de volta para casa, andando pela estrada,, o corpo molhado pela chuva e a alma lavada pela vingança, eu refletia sobre as coisas que a gente faz. Acreditem-me:nunca me passou pela cabeça matar o sujeito. A idéia só surgiu ao perceber o local em que ele havia parado o carro naquela noite.

A propósito: o que é amontilado? Quem é Edgar Allan Poe?

O monstro

Depois do resto do corpo, o cérebro cansa. Adormece lentamente, sem controlar as invisíveis cordas do raciocínio. É preciso reagir ao monstro paralisante, apesar do cinza ( o sol é apenas uma lembrança) e do frio ( o calor, um sonho).

A umidade desvirgina roupas e peles e as mensagens neurológicas do gelo chegam ao cérebro transformadas imediatamente em tremor.Agir contra o monstro paralisante, o lema;erguer essa bandeira, o sacrifício.

De que valerá levantar-se, pegar aquele livro que exigirá o manuseio, a leitura, a reflexão? E para quê, afinal, deixaram registradas em palavras as impressões que o tempo apagará, senão da memória dos homens, talvez no rastro radioativo que o último ódio produzirá?

O monstro-depressão mata qualquer esperança de respostas. Mas gera, sem querer, a necessidade delas. De fraca, porém, energia, que a condena a ser eterna necessidade.

Os olhos são-me de chumbo. À luta,contrapõe-se inércia. Objetivo: o sono.O acelerar de um carro lá fora fala de movimentos, sem dizer para onde.Vozes e passos na sala ao lado dizem de atividades.Quais?

Aqui, a batalha está perdida e o gesto de capitulação não poderia ser mais terrível: apertar o gatilho.

Certos escritores



- Eu não sou investigador!

- Mas vai ter que ir. Não é todo dia que uma mulher é encontrada morta em um estande da Bienal do Livro. Por isso, esse crime vai dar um barulho dos diabos na imprensa.

- Meu trabalho vai ser uma porcaria. Escrivão não investiga, escrivão escreve.

- Não interessa. O importante é que a polícia esteja presente.O pessoal da perícia já foi lá.

O diálogo marcou o início do dia em que escrivão Lúcio começou a investigar um crime.A ordem de serviço foi dada pelo delegado Matias, também diretor do sindicato da Polícia Civil, em telefonema do prédio da Justiça do Trabalho, onde fora participar de reunião com o secretario da Segurança Pública e o juiz. Era mais uma rodada de debates sobre a greve dos policiais. O movimento já entrava na segunda semana, sem perspectivas de solução .Para não descumprir a lei de greve, garantindo os chamados serviços essenciais, o sindicato mantinha, em cada distrito, uma equipe mínima .No distrito de Lucio, o único escrivão era ele,mais dois investigadores. Pinto Pelado trabalhou três dias e,no quarto, foi derrubado por uma dengue. O outro, Santão, precisou ir para casa descansar após quase 72 horas ininterruptas em ação.

- Não pode um caso desses ficar sem assistência policial. Se fosse um craqueiro assassinado em uma birosca no morro do Mundaú, tudo bem. Mas uma mulher? Na Bienal do Livro?Vai chover reporter .Se não tiver ninguém começando as investigações, cairão de pau na gente. A greve e a categoria vão ficar com a imagem arranhada perante a opinião pública.

O delegado e companheiro líder Matias não podia ser mais convincente e, dez minutos depois, Lúcio fazia sua estréia como investigador em um cenário de homicídio.Que não poderia ser mais apropriado: o estande pertencia a uma editora que começava a dedicar-se a livros com histórias policiais e aproveitava a bienal para lançar o primeiro volume de uma coleção chamada Viela do Crime.

"Isso não pode ser coincidência", pensou Lúcio, já treinando o tique desconfiado que deveria permear seu comportamento a partir de então. O corpo não estava mais lá. A equipe de peritos, em tempos de greve, também mínima , trabalhava rápido e à meia boca para atender a todos os casos que surgiam. Lucio teve de contentar-se em examinar o desenho, a giz, de um cadáver no chão.Como não há muito o que se concluir de uma coisa dessas, ligou para o perito Menezes que, após ser devidamente esclarecido sobre que diabos um escrivão estava fazendo na cena do crime, deu as primeiras informações: tratava-se de uma mulher, com idade entre 40 e 45 anos, morta há pelo menos uma hora- portanto às nove horas - e, ao que tudo indica, por um golpe certeiro no coração, causado por instrumento perfurante, de ponta nem fina, nem larga, conforme dava a entender a mancha de sangue na blusa, à altura do seio esquerdo.O corpo estava caído ao lado da pilha de livros no centro do estande. Mais não podia ser dito, senão após um exame melhor no Instituto Médico Legal. A ordem do delegado Matias foi para que removessem o cadáver o mais rápido possível . Antes da chegada de jornalistas. Os peritos sequer mexeram nas roupas da vítima e a operação retirada foi bem sucedida.

Desligado o celular, Lúcio voltou-se, então, para o cenário que se lhe apresentava. O estande possuia dois ambientes: na frente, o espaço livre, aberto ao público, tendo ao centro um estrado cheio de livros e, a um canto, uma cadeira. O outro ambiente era uma saleta, com porta que podia ser trancada a chave. O conjunto ficava na extremidade de um corredor entre duas fileiras de estandes.Ou seja: só tinha um acesso.Um beco sem saída. "O beco de crime.", refletiu Lucio, achando que este seria um título bem melhor para a coletânea de histórias policiais da editora.

Não era nem um pouco fã daquele tipo de literatura. Primeiro porque, a seu ver, os escritores não entendem nada de crimes, nem de soluções. Inventam aquelas bobagens sem a menor noção do que acontece na vida real. A maioria só viu defuntos em velório e olhe lá. Além do mais, têm a mania de apresentar a polícia como um bando de idiotas, truculentos ou incompetentes. "Fazem isso porque, na verdade, são policiais frustrados", concluía psicanaliticamente para quem estivesse interessado em ouvi-lo sobre o assunto. " Os verdadeiros autores de histórias policiais somos nós, os escrivães de polícia. Descrevemos a realidade, muitas vezes quando o crime mal acabou de acontecer" pontificava.

Acontece que, agora, ele não era escrivão. Era investigador.Precisava ouvir alguém e a perspectiva de ter de falar com escritores- pois, ao que lhe informaram, eram as pessoas mais próximas dos fatos ( além da representante da editora, que achara o corpo)- não lhe era muito agradável. Mas tinha que enfrentar os babacas.

Ele já sabia quem era a vítima e não precisou esforçar-se muito para isso pois a representante da editora, uma loura magrinha, nervosa , entre um soluço e outro, lhe informara. A morta era uma professora, que atuava como monitora de um estande da Secretaria Municipal da Educação.

- Cheguei a conversar com ela umas duas vezes. Disse que era fã de histórias de mistério e pretendia comprar o livro Viela do Crime. Fazia questão de obter os autógrafos dos autores- disse a loirinha.

Eram 10 autores, mas, ao lançamento do livro,marcado para as 10 horas daquele dia, só compareceram cinco. Estes combinaram chegar mais cedo, antes da entrada do público no pavilhão Todos na sala, com a representante da editora,alguém sugeriu que se tomasse um café, após o que tratariam dos detalhes da manhã de autógrafos. A representante, então, resolveu buscá-lo na lanchonete do pavilhão.

- No corredor, encontrei com a professora, que estava indo abrir o estande dela. Sugeri que, se ela quisesse pegar os autógrafos , sem atropelos, deveria aproveitar que os escritores estavam em nosso estande . Podia retirar um livro no estrado e me pagar depois. Ela achou a idéia boa e dirigiu-se para nosso espaço . Eu segui até a cantina. Foi tudo muito rápido. Quando voltei, cinco minutos depois, encontrei-a caída, perto do estrado . Fiquei nervosa, gritei pelos escritores, depois chamei um segurança, que ligou para o posto médico. Uma enfermeira veio e disse que a mulher estava morta. Como viu a mancha de sangue na blusa, achou melhor não tocar no corpo e que se chamasse a polícia.

A Polícia Militar chegou primeiro,isolou o lugar; os peritos vieram , fizeram o desenho a giz e sairam com o cadáver . Depois , como já se viu, apareceu o escrivão Mateus travestido de investigador. A próxima etapa de seu trabalho seria falar com os escritores

A necessidade de não perder tempo, aliada à falta de prática para começar uma investigação fez com que Lúcio decidisse interrogá-los coletivamente , dentro da salinha, de porta fechada, para ninguém atrapalhar. Ele na cabeceira e, em volta da mesa de reuniões, duas mulheres - uma grandona, com sotaque gaúcho e uma pequena, japonesa ou nissei- e três homens, um cabeludo, um careca e um quase gordo. Este, com cara de senador, pensou Lúcio, sem saber por que chegara a tal conclusão. .

Terminado o interrogatório, determinou que os cinco permanecessem na sala e foi para a área externa, transmitir, via celular, para o delegado Mateus, o primeiro relatório sobre o caso.Não conseguiu conter a irritação quando falou do interrogatório.



- Olha, doutor, se eu já não gostava de escritores de conto de carochinha policial, agora gosto menos ainda. Aquilo não foi um interrogatório, foi uma mesa- redonda.Eu fazia uma pergunta, eles vinham com uma análise.As duas mulheres eram as piores.

- Você demonstrou, dissimuladamente, é claro, que desconfiava de um deles como autor do crime?

- Não tive nem tempo. Antes que eu abrisse a boca, já foram dizendo que nenhum deles tinha saído da sala. A gaúcha disse que a moça da editora deveria ser descartada porque, quando eles sairam da sala, atendendo a seus gritos, ela ainda estava com a garrafa térmica e um pacote de copos de papel nas mãos e não havia nada que se assemelhasse a uma faca ou estilete por perto.A japonesa arrematou explicando que seria muito difícil,por falta de tempo e pela proximidade da sala, a loirinha desvencilhar-se da garrafa e dos copos, apunhalar, ou algo parecido, a vítima , esconder o punhal- ou coisa que o valha- pegar de novo os pacotes e só então chamar a atenção deles .

- Mas você não colocou a possibilidade de a vítima ter sido agredida em outro local , vindo a cair dentro do estande?

- Quando comecei a tocar no assunto, a japonesa disse que era improvável porque a representante da editora cruzou com a vítima a poucos metros do estande . Se o crime ocorreu logo após isso, ela ainda estava à vista, pois o corredor é comprido, e teria ouvido algum barulho ou notado a movimentação. Além disso, o atacante teria de ficar escondido e agir após a passagem dela rumo à cantina e não havia local onde alguém se enfiar naquele trecho do corredor.

- E se o agressor tivesse entrado pelo outro lado?

- Bem, doutor, nesse caso a conclusão é minha: não daria porque o estande é o último de um beco.Só tem uma entrada e uma saída.

- Puta que o pariu! Será, então, que a mulher se suicidou?

- Quando falei isso, tentando ser sarcástico, o sujeito com cara de senador , sem notar a ironia, foi logo dizendo, todo sério, que nunca ouviu falar de alguém dar uma facada mortal no próprio coração e depois esconder a arma. " Não havia nada que se parecesse com um punhal ou objeto cortante perto do corpo", completou o careca. Ou seja, os contadores de história da carochinha, do alto de sua sapiência literária, só faltaram me dizer que não houve ocorrência nenhuma e que tudo não passou de uma miragem.

- Bem. Vamos manter a calma. Segura os escritores e a mulher da editora no estande. Não os deixe nem ir ao banheiro enquanto não lhe chegarem as informações do Instituto Médico Legal sobre as causas da morte.Liga lá e aperta os caras.

-Falou.

Exatos 32 minutos depois, o escrivão/investigador Lúcio, com a voz meio desenxabida, ligou novamente para o delegado Matias.

-Tudor resolvido, doutor.A perícia acabou de me ligar.

-Resolvido o quê? A dúvida sobre a causa mortis?

- Não, doutor. Resolvido o caso todo.

- Puxa, que beleza! Mas você não parece muito contente com isso.Ânimo, rapaz! Acaba de solucionar seu primeiro crime!

- Mas não houve crime, doutor.

- Como assim?

- A mulher morreu de infarto.

- Não diga! E a mancha de sangue no lado esquerdo do peito e tudo o mais?

- Ela usava um daqueles suportes para quem tem problemas de coluna. Estes coletes têm várias hastes de metal por baixo do tecido. Quando caiu, uma delas soltou e provocou o ferimento de onde saiu o sangue.Mas não foi ele que causou a morte. Era muito superficial.

- Que coisa, não?

- Agora, doutor, gostaria que o senhor me fizesse um favor.

- Pode pedir.

- O senhor podia dispensar os escritores por telefone? Não estou muito a fim de falar com esses caras.

Uma casa só vê e ouve

Uma casa não tem controle sobre seu destino, nem sobre o destino de ninguém.É planejada, construída, reformada, reduzida,ampliada, destruída, à sua revelia.Uma casa não controla sequer sua degradação, que fica por conta dos insetos, das chuvas, dos ventos, do passar implacável dos anos.

Uma casa não determina o destino dos que nela residem ou simplesmente pernoitam. Mas ela os vê e os ouve.

Eu, por exemplo, olho e escuto o que fazem meus donos. Quando eles estão aqui,é claro, pois sou uma casa de praia e, como o tempo quente, no litoral norte paulista, dura menos de dois meses, é este o período médio anual em que os ouço e vejo. Não sou mansão luxuosa, mas admito ser bem confortável para uma casa de praia. Com dois andares, faço frente para a avenida da orla e fundos para o mar. O acesso à praia é pela porta na base da escada que liga a área de serviço ao segundo pavimento ( a outra escada é a que une a sala frontal, na parte inferior, aos dormitórios, em cima).

Não tenho caseiros. Meu dono não vê necessidade disso, pois mora na capital, a apenas 50 quilômetros daqui.De vez em quando, principalmente em fins de semana,ele aparece , faz uma vistoria geral e, se constata algum problema, um vazamento,uma sujeira,chama alguém da vila para solucionar. Às vezes faz isso nas férias de verão.No inverno, ele, a mulher e a filha, de pouco mais de 20 anos, costumam usar a casa para pernoitar , seguindo no outro dia bem cedo a Paraty, no Rio de Janeiro,onde, durante esta estação, ficam por alguns dias.

Foi numa destas baldeações que ocorreu aquilo.

Certo final de tarde. meu dono apareceu, sozinho, como de outras vezes. A novidade foi que arrombou a fechadura da porta dos fundos , deixou-a encostada e foi embora. Não retornou.

No outro dia, também ao entardecer,chegaram apenas mãe e a filha. Assemelham-se a irmãs,tal a elegância e agilidade ainda conservadas na mulher mais velha.Iriam a Paraty na manhã seguinte,sozinhas, pois o homem ficara na Capital , tratando de alguns negócios, e as encontraria depois,na cidade fluminense. Isso também ocorrera em outras ocasiões.E, tal qual nas vezes passadas, a mãe acomodou-se no quarto do casal e a filha no segundo quarto de hóspedes,no outro extremo do corredor.

Repito-lhes o que ouvi naquela noite, por volta das 23 horas:

" Doutor, estou falando no telefone do quarto, como o combinado. Para o senhor ter a certeza de que estou mesmo aqui.Pode ver o número aí no identificador de chamadas. Que gritaria é esta ? Ah! O senhor está na pizzaria, com alguns amigos. Entendi. É o álibi. Pois bem: o serviço está feito.Pode se considerar livre da jararaca.Mas não foi bem como o senhor disse. Quando entrei no quarto, estava tudo apagado, só tinha aceso um abajur fraco e sua mulher não estava no quarto,dormindo. Se estivesse, a coisa seria mais rápido e mais fácil, era só um sufoco na cama. Tive de esperar atrás da porta para, quando ela entrar, atacar antes que acendesse a luz. O jeito foi lhe quebrar o pescoço.Nada fácil porque a mulher era bem forte para a idade. Mas fica tranquilo que não houve grito,nem barulho. Sou bom nisso e não teve erro. Agora, o seguinte: em que lugar do quarto estão os cinco mil da segunda parte do pagamento do serviço? ... Na segunda gaveta da onde?... Da cômoda? Embaixo da caixa de jóias? Falou... Já vi... . Vou levar as jóias também . E o relógio em cima do criado mudo.Assim fica mais claro que houve assalto... Já sei... Não precisa repetir que preciso sair por onde entrei e deixar a porta aberta. Afinal, quem é que arromba uma porta, assalta uma casa, e, ao sair , tem o cuidado de fechar a porta ? .. Ok! Não vou mais ligar para este número.Sei que não vai adiantar porque é celular pirata e o senhor vai jogá-lo fora na primeira oportunidade. Tchau e até outra vez."



Uma casa, já disse,ouve,mas também vê.E o que vi,naquela noite, momentos antes de escutar o telefonema, foi o seguinte: a mãe levantou-se e dirigiu-se ao quarto onde estava a filha. " Não consigo dormir por causa de uma dor de cabeça horrorosa. Você não podia dar-me um desses seus comprimidos contra enxaqueca"?, disse. " Não quer que eu lhe faça também uma massagem no pescoço e nos ombros?", respondeu a jovem. " É uma boa idéia. Vá ao meu quarto e pega aquele creme que eu uso para massagear o rosto".

A moça foi.

Sou apenas uma casa. Vejo e ouço, mas não determino o destino de ninguém.

O sr.Gorfpoh

Para Edgar Allan Poe


Eu sou o Sr. Gorfpoh, assistente da diretoria da empresa. Estou saindo do prédio , acompanhado de minha namorada, secretária da presidência, , e não pretendemos mais voltar. Isso é bom porque não seremos mais humilhados pelo sr. diretor-presidente. Afinal, são 20 anos de serviço, sem nenhuma consideração. O que sempre fui? O faz tudo no gabinete da diretoria. O que ela sempre foi? A faz tudo na secretaria. Promoções? Não. Aumento de salário? Não. Mais trabalho? Sim. E humilhações.
"Sr. Gorfproh, o sr. parece ter talento para organizar eventos", disse-me ele um dia, inspirado,quem sabe, por algum desafeto meu . E- como se já não tivesse tanto para fazer- passei a ser responsável também por festinhas . Confesso que me dediquei àquilo. Talvez por crer que teria , enfim, algum reconhecimento. Na festa maior, a de fim de ano, quando da distribuição de dividendos aos acionistas, tornei-me insuperável. Não falo só da qualidade das decorações, iguarias, música Falo das surpresas. Em um ano, os cheques dos acionistas foram entregues por um Papai Noel que entrou pela janela do salão. Em outro, por dançarinas, em sumários biquinis. Houve uma vez em que levei uma atriz de TV, então atuando em novela de grande audiência ( consegui sua colaboração, de graça, por ser cunhada de um primo meu). Em todas as vezes, as festas foram sucessos, mas ele lembrou somente dos defeitos. Cerveja fria, uma ocasião; atraso no início, noutra; ar condicionado fraco, na mais recente. E as reprimendas sempre em público,na frente dos demais funcionários, diretores, contínuos.Anos e anos assim. Dia destes, porém, extrapolou. Humilhou minha namorada,após ela ter entornado, sem querer, uma xicara ,ao servir café durante reunião da diretoria. Estendeu-lhe o próprio lenço e ordenou-lhe que limpasse as gotas que cairam no chão . Não atendeu-a quando pediu para ir à copa buscar um pano apropriado. E ela fez o serviço agachada,diante de todos. Não tem a personalidade tão flexível quanto a minha e, por semanas, a vi ser consumida pelo sentimento de humilhação. No último domingo, não chegasse a tempo, e a encontraria morta em casa por excesso de tranquilizantes. Seu sistema nervoso reagia pessimamente ao dia-a-dia do serviço. Tornara-se-lhe insuportável conviver com os demais colegas. Não. Não podíamos continuar mais ali.Decidimos ir embora. Mas não deixaria de honrar o último compromisso, a festa dos dividendos . E nem furtei-me de preparar a aguardada surpresa anual . Sim. O diretor presidente foi avisado de que ela será inigualável. Está ansioso para vê-la.Como das vezes anteriores, não quis que eu adiantasse nenhuma informação. Prefere ser sempre surpreendido junto com os demais.Este ano, entretanto, ele tem uma função: dar o sinal para que a surpresa se concretize.Para isso, basta apenas pegar a garrafa de champagne da cabeceira da mesa e abri-la. O espoucar da rolha será o aviso para que comece o espetáculo. Tudo muito simples.Então, em cinco minutos o diretor-presidente estourará o champagne... Eu e minha namorada não estaremos por perto quando ele puxar a garrafa e , colada a ela, o pino da granada que deixei presa no fundo do balde de gelo