terça-feira, 30 de novembro de 2010

A última dose

Final de tarde e você está na varanda do apartamento do segundo andar, sentado em uma cadeira de praia, tomando uisque com gelo, cumprindo um ritual diário de alguns anos,que envolve, também, a assistir , pela TV, a famoso programa de debates esportivos.

Você já tem 45 anos e,a não ser pelos problemas de visão, que o incomodam há alguns meses, é um homem saudável. Atlético, pode-se dizer, consequência de certa obsessão por exercícios físicos durante quase duas décadas,a partir dos 18 anos.

Não fosse pela crescente miopia, que o faz mais ouvir do que assistir ao programa, e você estaria, agora, na praia,a duas quadras dali,correndo,nadando,jogando futebol ou apreciando a paisagem. E que paisagem! Mar verde, areia macia , céu azul são o de menos ante corpos femininos dourados apenas emoldurados por sumários biquinis .

Você,é claro, só estaria olhando as mulheres, sem os atuais óculos de lentes grossas, as notórias fundos de garrafa, que tanto o incomodam . Não pretende, a essa altura da vida, arruinar mais um casamento com outra aventura.Isso significaria ficar mais uma vez sem casa, sem sustento e sem oportunidade de recomeço. Com o agravante de que, nesta idade, sem profissão, nem aposentadoria e ainda por cima, fraco das vistas, as chances de sucesso seriam, no mínimo, mínimas

Houve um tempo em que recomeçar não era problema ( dai não resistir às tentações). Garoto de praia, não tinha a menor dificuldade em aproximar-se de seus alvos: mulheres de meia idade, mal amadas, ou não amadas, em boas condições finaneiras.Ontem, como hoje, um produto com muita oferta no mercado das relações afetivas.Elas ficam na praia,olhos gulosos para os apolos das ondas.As melhores, segundo sua avaliação abalizada,são as casadas, sustentadas pelos maridos. São menos exclusivistas porque têm muito o que perder. Querem de você a juventude, o corpo sarado, o romance excitado pela clandestinidade. E lhe dão boa vida: roupas, perfumes, dinheiro. Chegou a ganhar uma motocicleta de uma delas. E o que tinha de fazer? Em suma, limitar-se a ser bonito e gostoso.

A proporção em que ia ficando mais velho e a concorrrência dos novos garotões,maior, você foi fazendo concessões. Até mesmo morar junto, simulacros de casamentos.

Você lembra de dois casos especiais, mais complexos e duradouros, mas, também,mais rentáveis. O primeiro foi a advogada, solteira e bem sucedida da capital.Que,além de tudo, era bonita, apesar de ter o dobro de sua idade, na época. Conviveram por um ano, em aconchegante apartamento da península. Pena que a mulher não quis ser compreensível quanto ao fato de você, nas horas em que ela batalhava a vida nos fóruns, apreciar física e metaforicamente as menininhas douradas da areia.E separaram-se, ela cheia de ódio, você,cheio de nada.

Mas recomeçar não era difícil para um garoto dourado.E poucas semanas depois, veio o caso mais complicado: Ivete. Você não a esquecerá enquanto houver uma cantora homônima, de sobrenome Sangalo, dominando as paradas de sucesso e os programas de TV.

Era casada, com rico empresário da capital, que , nos verões, preferia ficar analisando os balanços da empresa a acompanhar a esposa e a filha, de cinco anos, ao litoral.Tanto pior para ele e melhor para você, a quem ela escolheu para preencher suas carências afetivas. Ivete,meio gordinha, meio baixinha, meio dentuça. Quem estava prestando atenção nisso, enquanto os balanços, cuidadosamenrte cevados pelo marido no planalto, lhe permitiam uma vida de prazeres no litoral?

Ivete, generosa.Ia além das boas roupas, perfumes, geringonças eletrônicas e mesadas das conquistas anteriores.Pagava-lhe o alugel de um pequeno,mas bem montado apartamento na orla e atingiu o cume da gentileza presenteando-o com um desses automóveis compactos, que você usava para impressionar as namoradas mais jovens quando, tanto o verão,quanto Ivete, encontravam-se ausentes.

Ivete, apaixonada. Um dia apareceu, exultante, dizendo que havia pedido divórcio ao marido, para viver com você. Ivete, maluca, abrindo mão de pensão , indenizações, propriedades, enfim, de tudo o que pudesse, segundo ela, retardar o tempo em que, imagine, vocês dois passariam a viver apenas um para o outro. Uma linda história de amor.

É você, é claro, não quis mais Ivete.Que, alguns anos depois, morreu, pobre, em algum lugar do interior do estado.

- Vou pegar o copo.

A empregada, jovem de 20 anos, interrompe suas recordações. Pontual e rotineira, faz isso há uns dois anos , desde que foi contratada. Serve o uísque ás 18 horas, pega o copo às 18,15, e vai embora às 18,30. Comportamento que ficaria mais adequado para uma criada velha e não para uma jovem.

- Dona Cida telefonou e disse que vai demorar mais uma meia hora.

Cida, sua atual e- você tem alguma dúvida?- definitiva mulher.Conheceu-a em um momento- para seus parâmetros morais- difícil.Já estava com 35 anos e a concorrência dos novos garotos dourados era imbatível. Quando foi atraída por seu ainda remanescente charme, em uma barraca de praia, Cida beirava os 50 e já era viúva de um major do Exército. Trazia de renda o percúlio militar e, de patrimônio, este apartamento de dois dormitórios, a duas quadras do mar, em que hoje moram.

Cida é o seu pecúlio.Tranquila, metódica, agora sessentona,mas não parecendo. Sabe como é:um dia, ginástica, em outro, como hoje, cabeleireiro, e assim por diante. A vida só seria melhor se sobrasse mais dinheiro para coisas do tipo contratar, para ele, um bom plano de saúde.Assim não precisaria, por exemplo, ter de consultar o oculista da clínica municipal. Nas duas vezes em que foi lá, o sujeito limitou-se a lhe receitar óculos mais fortes.Ele precisa é de um bom especialista. Qualquer dia destes, vai tocar no assunto com a Cida.

- Queria aproveitar que Dona Cida não está para conversar umas coisas com o senhor.

De novo a empregada.Você não tem a menor idéia do que ela poderia conversar consigo. Afinal, nunca lhe dirige mais do que meia dúzia de palavras. Natural. Quem resolve as coisas na casa é a esposa. E que história é essa de " aproveitando que dona Cida não está"?

- Hoje é meu último dia no emprego. Estou pedindo demissão.

Sem problemas, você pensa, após recuperar-se da rápida surpresa ante a revelação.

- Na verdade, quando comecei a trabalhar aqui, há dois anos, não precisava deste emprego. Tinha herdado alguma coisa de meu pai, falecido naquela mesma época.

Por que essa menina vem me encher o saco com sua história? você se pergunta, já preparado para mandá-la entender-se com a Dona Cida.

- Portanto, essa é a última dose que lhe sirvo, depois de dois anos fazendo isso todos os dias, pontualmente, ás 18 horas.

E daí? . Amanhã contratamos outra empregada e as coisas continuam exatamente como antes. Como se tivesse lido sua mente, a jovem continua:

- Não estou me referindo ao uísque. Estou falando da imperceptível dose de mercúrio que eu tirava de termômetros ( a gente compra fácil,isso, em qualquer lugar) e colocava na sua bebida todos os dias. Hoje, pus a última dose. Ela completa a quantidade necessária em seu organismo para que sua cegueira torne-se irreversível em poucas semanas. Você, homem saudável, viverá muito tempo, mas não verá mais nada.

E, após dizer isso, a filha da Ivete pegou a bolsa e foi embora.

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