Há uma semana, encarreguei o advogado de nossa família, pessoa de minha absoluta confiança, de lhe entregar esta carta porque não quero que ninguém saiba da existência dela,além,é claro, de vocês dois. Orientei-o para que o fizesse após minha morte- que ele não esperava fosse ocorrer tão cedo. E , para assegurar que só você conheceria o teor do texto, lacrei o envelope.
A essa altura, você já conhece todos os detalhes . Meu cadáver foi encontrado na ponte do lago do Parque Orquidário, em uma manhã chuvosa, com um ferimento a bala na cabeça, mais especificamente na fronte direita. Os bolsos do paletó e da calça tinham sido revirados; estava sem o relógio e a pulseira de ouro . Meu computador portátil sumiu. No local não foi encontrada nenhuma arma. A conclusão imediata da polícia , com certeza, é de que fui vítima de assalto.
A perícia técnica informou que morri no início da noite; ou final da tarde do dia anterior, dá no mesmo. O corpo foi encontrado de manhã, possívelmente por um vigia do parque.
Entendo que, neste momento, esteja surpresa com tais revelações. Pela caligrafia e assinatura, não tem dúvida de que a carta foi escrita por mim. Mas, como eu saberia, de antemão, tantos detalhes sobre meu próprio assassinato?
Por uma razão muito simples: não houve assassinato. Eu me matei.E você é a única pessoa que não poderia ficar sem saber isso, por duas razões. A primeira, é o fato de ter sido minha leal companheira por 30 anos, a única mulher a quem amei e a quem me devotei neste tempo todo. O segundo motivo: não posso correr o risco de outra pessoa vir a ser responsabilizada e punida por minha morte. E , sabendo o que realmente aconteceu, você poderá evitá-lo, se isso for necessário. Jamais deverá deixar que um inocente pague por meu ato extremado. Esse deverá ser o único motivo pelo qual deve ser revelado que me suicidei.
Entre os muitos fatores para seu estranhamento diante deste texto, está a repetição da expressões como " minha morte", " meu cadáver", " meu assassinato" . Compreendo. Você, mais do que ninguém, conhece minha repulsa e atração simultâneas por este nosso inevitável destino. Sabe o quanto o estudei,à luz das religiões, da filosofia, da ciência. E sabe, mais do que ninguém, que, acima mesmo da própria morte, apavorava-me a dor e o aniquilamento . Por que ,além de supremo mal, a morte tem, ainda, de ser antecedida pela dor e precedida pelo esquecimento?
O homem tem tido relativo sucesso na luta contra o olvido pós- morte, construindo mausoléus, perpetuando túmulos. Que o digam os faraós egípcios, com seus corpos imperecíveis e pirâmides gigantescas, o quanto essa tentativa pode ser bem sucedida. Entretanto, o que nos pode garantir que evitaremos o sofrimento pré-morte? As dores lancinantes, as agonias inenarráveis que antecedem o último suspiro?
Minha reação ao esquecimento você conhece, pois acompanhou, por anos, os esforços para a construção daquele mausoléu da família no cemitério da congregação.Um verdadeiro monumento, que será admirado por gerações e gerações e no qual investi uma parte considerável de nossa fortuna.
Restavam-me as providências para evitar o sofrimento. Confesso que, antes, minha concentração em tal objetivo não era muito frequente.Nem tanto por achar ser meta implausível.Talvez em razão do bloqueio mental, comum a todo ser humano, que o impede de pensar nos sofrimentos que antecederão à morte- ou na morte, propriamente.
Há uns dois meses, entretanto, precisei ser mais objetivo quanto a isso. Os resultados de meus exames médicos anuais revelaram que sou portador de rara moléstia que provoca a paralisia gradativa do corpo. Sofre-se por semanas e meses sentindo-se cada uma de suas funções motoras e vitais fenecerem, até a paralisação total. Nada detém o processo. Nada suaviza o sofrimento proporcionado por tão lenta agonia.
Ainda com os resultados dos exames em mãos, tomei a decisão: matar-me-ia antes dos primeiros sintomas do mal. E seria da maneira mais simples, rápida e indolor que se conhece: um tiro na cabeça. Não poderia arriscar-me a coisas como auto-envenenamento, com suas dores e suas possibilidades de erro e as consequentes sequelas torturantes .
Planejei tudo cuidadosamente. E nisso fui ajudado por aquelas leituras de romances e contos policiais- lembra?- hábito que você sempre achou curioso, levando-se em conta minha propensão intelectual à filosofia e ao esoterismo.
Primeiro, escolhi o local. Não precisei procurar muito para descobrir que o Parque Orquidário preenchia todas as condições. É uma área pública, de livre acesso, durante todo o dia. Fora da temporada de verão, não é muito visitado e fica praticamente deserto nos finais de tarde. Depois, o parque possui uma ponte sobre o trecho mais estreito de uma pequena lagoa, tranquila. A ponte fica quase escondida por arbustos e plantas ornamentais. As razões da importância desses detalhes para meu plano você entenderá mais adiante.
Escolhido o local, era preciso determinar o dia. Não com base em datas, mas quanto às condições de tempo. Teria de ser em um desses períodos chuvosos da meia estação.
Comprei o revólver, clandestino, com número de série raspada, em uma dessas chamadas feiras do rolo, tão comuns em nossa região, onde se vende de tudo e não se pergunta nada. Escrevi esta carta, tirei uma cópia xerográfica, coloquei o original em um envelope, lacrei-o e entreguei a nosso advogado, com as orientações quanto à entrega.
Quando surgiu o dia propício, de chuva intermitente, com possibilidade de continuação por pelo menos mais 24 horas, dirigi-me ao parque. No caminho, desfiz-me do relógio, da pulseira de ouro e do computador portátil ( jamais serão encontrados sob o mar, nos costões da península, onde os joguei). Às 17,30 horas,não tinha quase ninguém no parque. A área do lago estava vazia.
Você deve estar se perguntando: como eu poderia saber de todos os fatos ocorridos , entre a saída do escritório e o suicídio, se eles ocorreram depois que elaborei a carta? Ora, se a está lendo, é porque, a essa altura, todos os aspectos do plano deram certo.
No local, revirei os bolsos do paletó e da calça, apontei para a têmpora direita e disparei.Outras duas providências fundamentais para que nem se cogitasse a tese de suicidio já havia adotado anteriormente. A primeira delas foi a escolha de um dia e noite chuvosas. Antes de sair do escritório, passei sabão em pasta em toda a mão direita e até a altura do pulso, local que não seria coberto pelo punho da camisa de mangas compridas. Assim, os residuos de pólvora que costumam ficar na mão de quem utiliza arma de fogo ficariam presos à crosta de sabão, que posteriormente seria diluida pela água da chuva, eliminando, assim, qualquer vestígio de que eu mesmo possa ter disparado a arma.
O desafio maior, porém, estava em como dar sumiço ao revólver. Alguém tem condições de se matar e depois esconder a arma com que o fez ? Mais uma vez- e de maneira fundamental- minhas leituras de histórias policiais deram-me a solução. Lembra-se do conto O caso da ponte, protagonizado pelo grande Sherlock Holmes? Fiz o mesmo que a mulher da história: peguei uma corda, de cerca de um metro e meio, e, em uma das extremidades, amarrei, com seguros nós, o revólver. Na outra , com os mesmos cuidados, atei uma barra de ferro, de dois quilos. Deixei a barra suspensa sobre o lago, na mureta lateral da ponte; apontei a arma para a cabeça e atirei. Naturalmente, depois disso, larguei o revólver que, arrastado pelo peso do ferro, caiu no lago e afundou com ele.
Tomei dois cuidados adicionais: presa à barra de ferro, por arame inoxidável, e envolta em plástico, deixei a cópia desta carta. A corda que serviu para amarrar a arma e o ferro é de nylon. É preciso que, nem a corda, nem o invólucro da carta, apodreçam no fundo do lago. Devem ser encontrados intatos, no caso de você precisar de mais provas, além do original dessa carta, de que me suicidei. Conto sempre com a possibilidade de que, impotente para solucionar um caso de grande repercussão, a polícia, para dar satisfação à opinião pública, faça de bode expiatório alguns desses infelizes que costuma prender todos os dias. É prática mais comum do que se imagina e eu jamais poderia aceitar que isso ocorresse.
Por fim, minha querida, chegou a hora de responder à maior das perguntas que, sem dúvida, você deve estar se fazendo: por que engendrei trama tão complicada para fazer meu suicídio parecer um assassinato?
Lembra do mausoléu, que construi para última morada, com o qual , a exemplo dos faraós, decidi precaver-me do esquecimento póstumo, e que me custou tanto esforço e dinheiro? Lembra que é proibido o sepultamento de suicidas no cemitério da congregação?
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