sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Um esqueleto na ermida

Um policial pode solucionar crimes baseado em interesses meramente profissionais.A cada caso bem conduzido, mais pontos no prontuário, importantes para promoções futuras. Ou, pode atuar com a intenção de fazer justiça, levar os culpados à punição.Há aqueles que, solidários às vítimas, fazem de seu trabalho uma forma de compensá-las das perdas, materiais ou afetivas .


Ao delegado Drion, entretanto, nenhuma dessas motivações tinha relevância.Para ele, um caso deve ser solucionado simplesmente porque , continuando obscuro, contraria a ordem natural das coisas. “ Crimes não resolvidos são como quadros tortos na parede, os quais,permanecendo assim, causam mal-estar permanente”, costumava dizer.

O caso do esqueleto, encontrado próximo das ruínas da ermida do Guaibê, foi uma das demonstrações mais evidentes de que Drion levava tal princípio às últimas consequências.

A ossada fora achada, casualmente, por um dos estudantes que participavam de mutirão de limpeza do sítio histórico, situado às margens do canal que separa os municípios de Guarujá e Bertioga, no litoral  de São Paulo.

Quase completo,o esqueleto de pronto suscitou a dúvida: assunto de polícia ou de arqueologia? O local onde fora encontrado , embora tombado pelo serviço de patrimônio histórico estadual, estava ao abandono e permitia livre entrada.Aliás,o mutirão de estudantes, visando à roçagem de mato que cobria as ruínas e os acessos, fora iniciativa de uma organização não-governamental, à revelia das autoridades estaduais.

No século 16, a ermida tinha uma capela onde, segundo registros históricos, o padre José de Anchieta, patrono do Brasil, celebrava missas, após ser liberto pelos índios rebeldes da Confederação dos Tamoios. O sítio histórico é composto, também, pelo antigo Forte São Felipe, construído pelos espanhóis, à época do Tratado de Tordesilhas, para conter invasões estrangeiras naquele ponto da costa.

Sem vigilância,entretanto, toda a área vinha servindo, há anos, de esconderijo e abrigo para marginais, desocupados e vagabundos. Nos últimos anos,alguns corpos foram encontrados nas matas próximas , o que enquadrava o local, também, como ponto de “desova” de vítimas de assassinatos.

Era a primeira vez, porém, que se achava um esqueleto ali.O delegado , primeira autoridade a comparecer ao local após a descoberta, notando que a ossada estava quase toda oculta por terra e entulho, achou melhor chamar uma equipe do centro histórico municipal.Seriam necessárias escavações e a presença de gente ligada à arqueologia oficial evitaria aborrecimentos burocráticos e legais no futuro.

O solo arenoso, coberto por fina camada de vegetação, facilitou a retirada dos ossos. Junto com costelas, fêmures, artelhos, vértebras e o crânio, vieram, também, trapos e pedaços do que pareciam ser cordas , tecidos e madeira. Por decisão unânime, ao invés do Instituto Médico Legal, o esqueleto foi enviado ao laboratório de arqueologia da Universidade Paulista.

Duas semanas depois, Drion foi chamado. Finalmente teria informações técnicas sobre o esqueleto , disse-lhe, ao telefone, o diretor do laboratório de arqueologia. Coisa que o instituto médico legal, da polícia, teria feito em 24 horas, pensou o delegado assim que desligou o aparelho.

- Como prevíamos, trata-se do esqueleto de um homem branco que viveu 500 anos atrás.Provavelmente um português, soldado, padre, marinheiro ou comerciante, o tipo de gente que habitava aquelas paragens no século 16.

A partir daí, o professor, por uns 10 minutos, desenvolveu uma minipalestra sobre os achados históricos no sítio do Guaibê. E fez questão de mostrar uma exposição deles, em sala anexa.Entre as peças, dois esqueletos, um adulto e uma criança..

- Os dois são de índios e da mesma época que o esqueleto do branco. Quando foram encontrados, nos anos 60, estavam quase nas mesmas condições que ele.Guardamos os objetos encontrados juntos.Observe que são em maior quantidade, pois era costume índio sepultar os mortos com seus pertences. A nova descoberta será importante para nossos estudos da área porque se trata do primeiro esqueleto de origem européia achado ali.

E , enquanto falava , mostrava pedaços de tecidos, de cordas , fibras vegetais, cerâmicas quebradas, dois ossos de animais, ponteagudos, pontas de flechas; miçangas que deveriam ter feito parte de colares ou braceletes, achados juntos aos esqueletos indígenas.

Ao policial, as explicações foram mais do que suficientes. O caso, enfim, não era seu; era para os doutores.

O professor o levou, novamente, ao laboratório, onde, apontando o esqueleto sobre a mesa,disse, com certa malícia no olhar

- Se o senhor vivesse no século 16, talvez o caso de nosso amigo, aí, o interessasse.Ele foi assassinado.

Ante o olhar espantado do policial, o professor explicou:

- Veja, nas vértebras e na coluna, estes riscos . São sinais típicos de ferimentos por objetos cortantes.Como policial, o senhor sabe que quando alguém leva uma facada ou punhalada, à altura do coração ou pulmões, as armas acabam atingindo ossos do tórax, produzindo marcas indeléveis.Nosso amigo aí levou vários golpes, a julgar pelo número de marcas.



Não eram passadas 48 horas após a visita do delegado, e o diretor do laboratório de arqueologia recebeu ofício da Secretaria de Segurança Pública, solicitando permissão para que uma equipe de peritos fizesse fotos e coletasse amostras de todo o material que fora apresentado a Drion. E não se passaram 24 horas após o atendimento ao pedido até que aparecesse na Universidade uma equipe da perícia policial,com toda sua parafernália.

Fotografaram não só o esqueleto recém-encontrado,como, também,os outros dois da exposição anexa, assim como os objetos com eles achados, dos quais, também, recolheram amostras para análises laboratoriais.

E não transcorreram mais de 10 dias até que o delegado Drion telefonasse para o professor, pedindo-lhe uma data para visita.

A curiosidade do professor fez com que abrisse espaço em sua agenda em menos de 48 horas.E na data e horário estipulados, lá estava o delegado, na sala do acadêmico,desta vez falando mais do que ouvindo.



- Quando sai daqui aquele dia, entre todas as palavras que o senhor disse, uma ficou ecoando em meu cérebro : “ assassinado”. Perfeitamente compreensível: sou policial há 30 anos e tenho como que um reflexo condicionado diante de termos ligados diretamente à minha profissão.Este mesmo reflexo é responsável pelo fato de, após ouvir a palavra, começar a estabelecer conexões, as quais só são possíveis se existir o que chamamos de pontas. E, neste caso, há várias .

O professor, atento, achava curioso que o delegado se referisse ao assunto como se fosse um caso policial, pura e simples, enquanto ele o via como mero motivo para uma pesquisa científica Algo lhe dizia que aquele diálogo caminhava para ser como dois trilhos de trem, que nunca se encontram.

- As pontas - continuava o delegado- estavam tanto nos achados de agora, como nos dos anos 60, na sala de exposições. Quando o senhor falou em assassinato, comecei , a analisar tudo o que vi como se estivesse em uma cena de crime. Ao estabelecer relações, constatei uma primeira convergência: pedaços de tecidos encontrados no esqueleto europeu eram semelhantes aos achados junto aos ossos do índio adulto.

A essa observação, o professor permitiu-se interromper.

- Não sei onde o senhor que chegar, delegado, mas talvez possa estar se precipitando ao fazer qualquer relação. Naquela época e local, os índios estavam aculturados,viviam junto dos brancos. O fato de possuirem tecidos semelhantes não seria tão surpreendente assim.

- Concordo, professor. Mas nunca tiramos conclusões com base em uma relação,ou na primeira das relações. Quase sempre os dados iniciais não são conclusivos, mas acabam servindo como pontos de partida ou inspiração para isso. Nesse caso, os tecidos serviram apenas como inspiração.Aquela coisa intuitiva, para a qual não temos explicações.

Decidiu-se, então, analisar, no microscópio, as imagens dos dois ossos ponteagudos, semelhantes a extremidades de lanças ou punhais, do rol de pertences do índio adulto, e as fissuras nos ossos do esqueleto europeu. A descoberta foi simplesmente espantosa: uma das lâminas encaixava-se milimetricamente nos sulcos observados nos ossos do tórax do homem branco.

- A conclusão é simples, professor: quem matou o nosso amigo branco foi o índio ,cujos restos estão na sala ao lado.

Para o delegado Drion, crimes não resolvidos são como quadros tortos na parede, que causam permanente incômodo ao olhar. É preciso colocá-los na posição correta. Mesmo passados 500 anos.

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