quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Jogo de compensações

O dia mal amanhecia quando entrou no apartamento e, em gesto que já se tornara mecânico há anos,sempre ao chegar em casa, jogou a arma e o distintivo de policial civil sobre a mesinha de centro da sala. A mesma rotina repetiu-se no ato de ligar a televisão, ir ao banheiro, tomar uma ducha, sair enrolado na toalha, pegar novamente a arma e o distintivo e colocá-los na gaveta do criado-mudo, no quarto.

Mas, há seis meses este gesto não tem testemunha, nem é repetido na mesma casa . Separara-se da mulher, com quem convivera por seis anos, e, há três meses, morava sozinho em um pequeno apartamento .

Ao retornar do banheiro, sintonizou a TV em um canal de notícias.As manchetes do dia – inevitáveis- eram sobre o atentado ao ministro da Administração Federal, ocorrido no início da noite anterior. Aproveitou a pausa para comerciais, foi à cozinha, pegou uma garrafinha de iogurte, dessas que, segundo o rótulo, ajudam na digestão . Quando retornou à sala, um reporter dava detalhes do ocorrido.

O atentado verificara-se momentos após o ministro, em veículo do ministério, sair de sua residência para um compromisso oficial. Quando o motorista freou, antes de entrar na avenida em frente da moradia, um homem aproximou-se e efetuou vários disparos, à queima roupa. Tudo muito rápido . O vigilante da casa mal tinha acabado de fechar o portão, quando presenciou a cena. Correu até o local, mas o atirador teve tempo de escapar por um bosque nas imediações.

Socorridos, instantes após o alarme do vigilante, o ministro e o motorista foram levados para o hospital. Atingido na coxa esquerda e na mão direita, o ministro,que estava no banco de passageiros, escapou do atentado com vida, mas o motorista não teve a mesma sorte. Um dos disparos acertou-lhe a cabeça e ele morreu ainda na ambulância.

Estivesse ainda casado e o fato seria compartilhado com a mulher. Ela viria da cozinha com duas canecas de café fumegante, dar-lhe-ia uma, sentar-se-ia a seu lado e os dois, sorvendo lentos goles, assistiriam ao noticiário.

Sua noite fora agitada.Esticou-se no sofá, fechou os olhos e um leve torpor invadiu-lhe o corpo. Não dormiu. Estava cansado, mas não tinha sono.Voltou a olhar a TV quando ouviu anunciarem entrevista do delegado da Polícia Federal encarregado de investigar o crime.

- Ainda é cedo para qualquer conclusão e algumas pistas que temos manteremos em segredo, para não atrapalhar as investigações.

O mesmo papo de sempre, pensou.Na maior parte das vezes, a autoridade encarregada de um caso de repercussão falava,nas entrevistas, de informações que não podiam ser divulgadas. Na verdade, não deveriam ter pista nenhuma. Mas precisavam dar alguma satisfação pública, sem demonstrar incompetência.

- Ao que tudo indica, o atirador agiu sozinho.Usou uma pistola automática- explicava o delegado.

- O senhor tem idéia da motivação do atentado?- indagou um reporter.

- Sobre isso, não temos opinião formada, respondeu o delegado, encerrando a entrevista.

Corte para a redação.O apresentador do noticiário ao lado de um especialista em segurança. O que levara o agressor a atirar pela da janela do motorista? –indagou o jornalista.

- Tudo indica que ele vigiou, por algum tempo, a casa e a rotina do ministro. Deve ter notado, entre outras coisas, que o ministro , ao invés de ficar na banco de trás, como é mais frequentre, sentava do lado do motorista. Deve ter observado, também, que, após percorrer a faixa de terreno em frente da residência, o motorista parava, antes de entrar na avenida. Segundo o primeiro depoimento do vigia da guarita da casa, sob chuva e à noite,o motorista costumava abrir parcialmente a janela, para facilitar a visão, já que todos os vidros do carro são do tipo fumê. O atirador deve ter notado tal hábito. Deduzindo, possívelmente, que o veículo tivesse janelas blindadas, o elemento, para garantir a eficiência de seu trabalho, esperou por um dia de chuva e o instante propício para se aproximar e atirar dentro do veículo.

Após a entrevista, foi para a cozinha.Precisava tomar um café puro.Enquanto aguardava a água ferver, ligou o rádio.O atentado era o prato cheio das emissoras de notícias.Ouviu argumentos de políticos, opiniões de especialistas em segurança pública; de amigos do ministro. Familiares recusavam-se a falar. E o governo? O que tinha a dizer?- indagou-se. Como a responder-lhe a pergunta, um reporter,diretamente do Palácio Central, anunciava que o presidente da República pretendia manifesta-se sobre o assunto em rede nacional de rádio e TV.

Voltou à sala. Por instantes, antes do primeiro gole de café, ficou olhando a caneca branca .Recordou-se da coleção de canecas artisticamente coloridas de sua antiga casa, uma das manias da ex-mulher. Achava-as todas bonitas, mas sempre bebia na mesma, uma verde musgo, decorada com flores amarelas.Essas pequenas lembranças da vida de casado eram frequentes, agora. Ao se enxugar após o banho, por exemplo, não tinha como não rememorar as toalhas grandes, felpudas e coloridas que ela sempre fazia questão de manter no suporte do banheiro.

Muita coisas miúdas do passado voltavam-lhe à mente em rotinas míudas do presente.Não prevaleciam a saudade ou a nostalgia, entretanto, entre os sentimentos que acompanhavam tais lembranças.A revolta era maior consequência dessas rememorações. Afinal, separara-se da mulher ao descobrir que ela o traía.Sair, pura e simplesmente de casa, fora sua única reação. Sentia que, cedo ou tarde, isso poderia ocorrer.Não era o primeiro policial traído pela mulher.

O psicólogo da Polícia, a quem recorrera em um dos momentos mais críticos de seu casamento, e a quem falara dos cada vez mais frequentres atritos conjugais, fora realista. “ Coloque-se no lugar dela. Você sai, ela não sabe se você volta ou quando volta.Há sempre um mistério em torno do que faz. Quando conversa com ela sobre o trabalho, qual o assunto? Mortes, roubos, assaltos,estupros,tiros. E vocês, policiais, nem sempre colaboram para que essa rotina estranha seja suavizada. Costumam envolver-se mais facilmente com o submundo do que com o ambiente familiar”, disse.

Ao saber da traição, seu primeiro desejo foi matá-la. Todo homem pensa assim, em tais circunstâncias, e um policial pensa mais. Não é esse o código do mundo em que convive a maior parte do tempo? Contudo, poderoso freio conteve a reação : a lembrança do filho, de três anos de idade. E depois, passadas as semanas, inevitável reconhecer: o amor que ainda sentia por ela. Hoje, as emoções antes tão fortes, diluiam-se como a fumaça de um cigarro,permitindo que enxergasse também sua culpa no processo.

Batem, agora, a porta. É o porteiro do prédio, trazendo-lhe o jornal do dia.O atentado ao ministro ganhara quase um caderno especial.Metade do espaço de uma das páginas refletia a perplexidade geral ante a escolha da vítima. Afinal, qual a importância estratégia de se eliminar alguém com tal cargo, de atribuições mais burocráticas que políticas, de um setor de orçamento baixo, com poucas chances para as já notórias negociatas? Seus titulares são,geralmente, funcionários de carreira, que só se tornam conhecidos quando indicados pelo presidente.Em que a morte de alguém assim abalaria os alicerces do poder? Que estrutura política sofreria com isso?-indagava um articulista.

Era difícil, até mesmo, encontrar alguma motivação de carater pessoal . Homem discreto, hábitos regrados , o ministro vivia com a mulher, também funcionária federal, só que aposentada. O casal não tinha filhos e a única atividade que lhes alterava a rotina, nos fins de semana, eram aquelas relacionadas a uma igreja evangélica de que eram frequentadores.” Talvez sua escolha, como vítima, deveu-se ao quase inexistente sistema de segurança de que dispunha, reduzido ao vigilante da casa”, pontificava um político entrevistado.

Largou o jornal sobre o sofá e foi ao banheiro.De tudo o que ouvira, lera e vira até então, sobre o atentado,não havia nada que lhe parecesse relevante.Muitas opiniões, poucos fatos reveladores.Na verdade, lembrava-se agora, a notícia mais importante que recebera, nas últimas semanas, fora a de que o homem com que a mulher o traíra havia se recusado a viver com ela. Na ocasião, a consequência óbvia seria ficar alegre. .Entretanto, só sentiu o refluxo de sentimentos conflitantes. Fizera sofrer a mulher e ela o trocara por outro, fazendo-o sofrer, também. Ela tivera,porém, seu revés, sendo rejeitada pelo amante.Este jogo de compensações precisava ser concluído decidiu, na ocasião.

O som subitamente elevado da TV, coisa típica das chamadas que antecedem informes extraordinários, despertou-o, novamente, do estado reflexivo:

- Entramos em rede nacional para pronunciamento de sua excelência, o presidente da República.

Semblante carregado, esforço no olhar e nos gestos para sublinhar a gravidade do momento, o chefe da Nação falou.

- Estou aqui para manifestar , em meu nome e de todos os cidadãos, o repúdio ante o brutal atentado a um ministro de Estado , crime que atingiu a todos nós, cidadãos de bem, que lutamos por uma sociedade progressista e pacífica. Se os agressores pretendiam desestabilizar o Governo na pessoa de um de seus menbros, fracassaram duplamente em seu intento.O ministro sobreviveu e nós não recuaremos um só milímetro em nossas ações públicas. Não pouparemos, também, esforços para descobrir e punir os autores diretos e indiretos de tão covarde agressão.

Desligou a TV. Não queria ouvir mais nada. O pronunciamento presidencial só o estava irritando. Como autor do atentado, sabia que não fracassara.Seu objetivo não era desestabilizar nenhum governo, era concluir o jogo de compensações de sua tragédia pessoal. E seu alvo não era o ministro. Era o motorista, com quem a mulher o traíra.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Um esqueleto na ermida

Um policial pode solucionar crimes baseado em interesses meramente profissionais.A cada caso bem conduzido, mais pontos no prontuário, importantes para promoções futuras. Ou, pode atuar com a intenção de fazer justiça, levar os culpados à punição.Há aqueles que, solidários às vítimas, fazem de seu trabalho uma forma de compensá-las das perdas, materiais ou afetivas .


Ao delegado Drion, entretanto, nenhuma dessas motivações tinha relevância.Para ele, um caso deve ser solucionado simplesmente porque , continuando obscuro, contraria a ordem natural das coisas. “ Crimes não resolvidos são como quadros tortos na parede, os quais,permanecendo assim, causam mal-estar permanente”, costumava dizer.

O caso do esqueleto, encontrado próximo das ruínas da ermida do Guaibê, foi uma das demonstrações mais evidentes de que Drion levava tal princípio às últimas consequências.

A ossada fora achada, casualmente, por um dos estudantes que participavam de mutirão de limpeza do sítio histórico, situado às margens do canal que separa os municípios de Guarujá e Bertioga, no litoral  de São Paulo.

Quase completo,o esqueleto de pronto suscitou a dúvida: assunto de polícia ou de arqueologia? O local onde fora encontrado , embora tombado pelo serviço de patrimônio histórico estadual, estava ao abandono e permitia livre entrada.Aliás,o mutirão de estudantes, visando à roçagem de mato que cobria as ruínas e os acessos, fora iniciativa de uma organização não-governamental, à revelia das autoridades estaduais.

No século 16, a ermida tinha uma capela onde, segundo registros históricos, o padre José de Anchieta, patrono do Brasil, celebrava missas, após ser liberto pelos índios rebeldes da Confederação dos Tamoios. O sítio histórico é composto, também, pelo antigo Forte São Felipe, construído pelos espanhóis, à época do Tratado de Tordesilhas, para conter invasões estrangeiras naquele ponto da costa.

Sem vigilância,entretanto, toda a área vinha servindo, há anos, de esconderijo e abrigo para marginais, desocupados e vagabundos. Nos últimos anos,alguns corpos foram encontrados nas matas próximas , o que enquadrava o local, também, como ponto de “desova” de vítimas de assassinatos.

Era a primeira vez, porém, que se achava um esqueleto ali.O delegado , primeira autoridade a comparecer ao local após a descoberta, notando que a ossada estava quase toda oculta por terra e entulho, achou melhor chamar uma equipe do centro histórico municipal.Seriam necessárias escavações e a presença de gente ligada à arqueologia oficial evitaria aborrecimentos burocráticos e legais no futuro.

O solo arenoso, coberto por fina camada de vegetação, facilitou a retirada dos ossos. Junto com costelas, fêmures, artelhos, vértebras e o crânio, vieram, também, trapos e pedaços do que pareciam ser cordas , tecidos e madeira. Por decisão unânime, ao invés do Instituto Médico Legal, o esqueleto foi enviado ao laboratório de arqueologia da Universidade Paulista.

Duas semanas depois, Drion foi chamado. Finalmente teria informações técnicas sobre o esqueleto , disse-lhe, ao telefone, o diretor do laboratório de arqueologia. Coisa que o instituto médico legal, da polícia, teria feito em 24 horas, pensou o delegado assim que desligou o aparelho.

- Como prevíamos, trata-se do esqueleto de um homem branco que viveu 500 anos atrás.Provavelmente um português, soldado, padre, marinheiro ou comerciante, o tipo de gente que habitava aquelas paragens no século 16.

A partir daí, o professor, por uns 10 minutos, desenvolveu uma minipalestra sobre os achados históricos no sítio do Guaibê. E fez questão de mostrar uma exposição deles, em sala anexa.Entre as peças, dois esqueletos, um adulto e uma criança..

- Os dois são de índios e da mesma época que o esqueleto do branco. Quando foram encontrados, nos anos 60, estavam quase nas mesmas condições que ele.Guardamos os objetos encontrados juntos.Observe que são em maior quantidade, pois era costume índio sepultar os mortos com seus pertences. A nova descoberta será importante para nossos estudos da área porque se trata do primeiro esqueleto de origem européia achado ali.

E , enquanto falava , mostrava pedaços de tecidos, de cordas , fibras vegetais, cerâmicas quebradas, dois ossos de animais, ponteagudos, pontas de flechas; miçangas que deveriam ter feito parte de colares ou braceletes, achados juntos aos esqueletos indígenas.

Ao policial, as explicações foram mais do que suficientes. O caso, enfim, não era seu; era para os doutores.

O professor o levou, novamente, ao laboratório, onde, apontando o esqueleto sobre a mesa,disse, com certa malícia no olhar

- Se o senhor vivesse no século 16, talvez o caso de nosso amigo, aí, o interessasse.Ele foi assassinado.

Ante o olhar espantado do policial, o professor explicou:

- Veja, nas vértebras e na coluna, estes riscos . São sinais típicos de ferimentos por objetos cortantes.Como policial, o senhor sabe que quando alguém leva uma facada ou punhalada, à altura do coração ou pulmões, as armas acabam atingindo ossos do tórax, produzindo marcas indeléveis.Nosso amigo aí levou vários golpes, a julgar pelo número de marcas.



Não eram passadas 48 horas após a visita do delegado, e o diretor do laboratório de arqueologia recebeu ofício da Secretaria de Segurança Pública, solicitando permissão para que uma equipe de peritos fizesse fotos e coletasse amostras de todo o material que fora apresentado a Drion. E não se passaram 24 horas após o atendimento ao pedido até que aparecesse na Universidade uma equipe da perícia policial,com toda sua parafernália.

Fotografaram não só o esqueleto recém-encontrado,como, também,os outros dois da exposição anexa, assim como os objetos com eles achados, dos quais, também, recolheram amostras para análises laboratoriais.

E não transcorreram mais de 10 dias até que o delegado Drion telefonasse para o professor, pedindo-lhe uma data para visita.

A curiosidade do professor fez com que abrisse espaço em sua agenda em menos de 48 horas.E na data e horário estipulados, lá estava o delegado, na sala do acadêmico,desta vez falando mais do que ouvindo.



- Quando sai daqui aquele dia, entre todas as palavras que o senhor disse, uma ficou ecoando em meu cérebro : “ assassinado”. Perfeitamente compreensível: sou policial há 30 anos e tenho como que um reflexo condicionado diante de termos ligados diretamente à minha profissão.Este mesmo reflexo é responsável pelo fato de, após ouvir a palavra, começar a estabelecer conexões, as quais só são possíveis se existir o que chamamos de pontas. E, neste caso, há várias .

O professor, atento, achava curioso que o delegado se referisse ao assunto como se fosse um caso policial, pura e simples, enquanto ele o via como mero motivo para uma pesquisa científica Algo lhe dizia que aquele diálogo caminhava para ser como dois trilhos de trem, que nunca se encontram.

- As pontas - continuava o delegado- estavam tanto nos achados de agora, como nos dos anos 60, na sala de exposições. Quando o senhor falou em assassinato, comecei , a analisar tudo o que vi como se estivesse em uma cena de crime. Ao estabelecer relações, constatei uma primeira convergência: pedaços de tecidos encontrados no esqueleto europeu eram semelhantes aos achados junto aos ossos do índio adulto.

A essa observação, o professor permitiu-se interromper.

- Não sei onde o senhor que chegar, delegado, mas talvez possa estar se precipitando ao fazer qualquer relação. Naquela época e local, os índios estavam aculturados,viviam junto dos brancos. O fato de possuirem tecidos semelhantes não seria tão surpreendente assim.

- Concordo, professor. Mas nunca tiramos conclusões com base em uma relação,ou na primeira das relações. Quase sempre os dados iniciais não são conclusivos, mas acabam servindo como pontos de partida ou inspiração para isso. Nesse caso, os tecidos serviram apenas como inspiração.Aquela coisa intuitiva, para a qual não temos explicações.

Decidiu-se, então, analisar, no microscópio, as imagens dos dois ossos ponteagudos, semelhantes a extremidades de lanças ou punhais, do rol de pertences do índio adulto, e as fissuras nos ossos do esqueleto europeu. A descoberta foi simplesmente espantosa: uma das lâminas encaixava-se milimetricamente nos sulcos observados nos ossos do tórax do homem branco.

- A conclusão é simples, professor: quem matou o nosso amigo branco foi o índio ,cujos restos estão na sala ao lado.

Para o delegado Drion, crimes não resolvidos são como quadros tortos na parede, que causam permanente incômodo ao olhar. É preciso colocá-los na posição correta. Mesmo passados 500 anos.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Justo hoje





Pela vidraça frontal, ele vê o policial sair da viatura e cruzar a rua.” Vai entrar aqui”, imagina e, dirige-se ao banheiro.

Entrara no bar há uns cinco minutos, 10 após a morte de seu chefe.Os outros cinco gastara andando, rápido, até ali, a partir do escritório, local da tragédia.

Conhece o bar. Fica sempre vazio àquela hora da manhã. Desde sua entrada, à exceção dele, apenas o barman está no recinto, limpando uns copos.

È ali que pretende raciocinar sobre o que acontecera há pouco. Tomar decisões.Sabe que, a partir de agora, sua vida jamais será a mesma.Está entre ser um presidiário ou um foragido. Ao entrar na garganta do chefe, o estilete de cortar papéis matara, também, qualquer aspiração sua a uma existência comum, de sonhos a realizar; de realidades com que sonhar.

No banheiro, tenta lembrar o que aconteceu. Ajuda-o o controle das emoções, o que,aliás, é a mais forte característica de sua personalidade. Incontáveis foram as vezes, em seus 30 anos de vida, em que adotara atitudes serenas, enquanto um vulcão revolvia-lhe a alma.” Sangue de barata” é o nome que sua ex-mulher dá a essa sua incapacidade de “chutar o pau da barraca”, como se diz por aí.

Mas ele é assim e a vista não se lhe toldou de vermelho nem mesmo no instante em que a lâmina soltou-se daquela carótida, causando, com sua queda, um esguicho de sangue, Quando o corpo rotundo do chefe tombou sobre o tapete, nem isso permitiu que as emoções tomassem-lhe o lugar dos pensamentos.Nada que o levasse a priorizar uma grito, uma correria incerta, um apelo. Aproximou-se do corpo, certificou-se da morte, abriu a porta da sala, saiu,fechando-a atrás de si, Atravessou o corredor entre os cubículos nos quais abrigavam-se os demais funcionários; chegou ao corredor externo e só acelerou os passos na escada, que preferiu ao elevador. Afinal, o escritório fica no quarto andar e, pelos degraus, era mais fácil , rápido e seguro atingir a rua, antes que se descobrisse o ocorrido.

Entre os funcionários, apenas a secretária entrava com frequência na sala do chefe e,mesmo assim, se chamada. Era quase certo que, apenas passados uns 15 minutos sem ser acionada, ela resolvesse falar-lhe pelo intercomunicador, para transmitir algum recado. E, ante o inevitável silêncio, resolvesse ver o que estava acontecendo.

Teve tempo, assim, para , sem ser barrado,chegar à rua e, em seguida, ao bar, que já conhecia de inúmeros happy hours e almoços. É claro, não pretende esconder-se ali. É, digamos, uma pausa estratégica, para pensar. E agora o faz dentro do banheiro.Teria o policial entrado? Ou apenas atravessou a rua? Teria sido movimentação de rotina ou, como centenas de outros colegas, àquela altura, já estava atendendo ao alarme de assassinato?

Jamais planejara matar o chefe.Mas não podia negar as vezes em que isso lhe passara pela cabeça nos cinco anos de firma.Porque o homem era destes, não tão raros , que sentem um prazer sádico em humilhar subordinados.Com ele, fazia-o, de preferência, diante dos demais funcionários.E não deixava passar mais de uma semana entre uma humilhação e outra.A cada descompostura; a cada sobrecarga de trabalho desnecessária , o sangue fervia-lhe nas veias, como ferviam, no seio da montanha, lavas de um vulcão, cuja erupção, entretanto, cuidava de evitar.Aceleravam-se as batidas do coração, as têmporas latejavam, mas o semblante era de serenidade.Contida e humilde serenidade.Ajudava-o, é claro, o temperamento “ sangue de barata”, com o providencial reforço da necessidade do emprego.Ninguém, acreditaria, porém que não odiava o superior.

E o déspota tinha que desancá-lo justo hoje, quando dirigira-se ao trabalho ainda tendo a ecoar, no cérebro, as palavras da mulher,pedindo o divórcio.Chegado ao escritório,nem mesmo digerira a revelação que desestruturaria sua estabilidade familiar e o chefe já o chamava na sala, onde, nos cinco minutos seguintes, em meio aos sempre impressionantes acessos de fúria,mostrou-lhe o quanto o considerava incompetente, desprezível e sem futuro.

E também, justo hoje, resolveu retrucar. Contido, humilde, mas resolveu.Tão inesperada pareceu ao chefe a reação que este, após ouvi-lo , esbugalhou os olhos, como alguém à beira de uma apoplexia,rodeou a mesa e, à falta de uma palavra que definisse sua ira ante tanta insolência de um subordinado, empunhou o estilete de cortar papéis, aproximando-o do rosto do funcionário.

- Não sei onde estou com a cabeça que não…

A frase não terminou, pois , em um gesto instintivo de defesa, o subordinado segurou-lhe o punho, fazendo, sem querer,com que a lâmina virasse em sentido contrário.O impulso do corpanzil do chefe e a inércia cuidaram do resto.

Um acidente.Mas alguém acreditaria nisso? A descrença quanto a essa possibilidade foi que o fez pensar em fugir do prédio, antes de mais nada.Só ele e o chefe sabiam o que ocorrera naquela sala, de onde apenas um saiu vivo, cruzando o corredor entre cubículos . Maior suspeito de assassinato, impossível. Breve caçada humana, inevitável.

Interrompe a rememoração. Precisa saber se o policial entrara no bar.Por sorte, o conjunto de sanitários em que se esconde dá frente para o salão. E não tem porta: a divisória é uma cortina de tiras plásticas. É por entre elas que vê o policial. Aparenta tranquilidade e diz alguma coisa ao barman.

Refere-se o diálogo à sua presença? Se for, não há outra alternativa senão entregar-se. Fatalista, abre a porta do banheiro e sai, a tempo de verificar que o guarda , após ouvir, com expressão atônita, a mensagem que lhe era transmitida pelo radiocomunicador preso ao peito, corre para a porta da frente.

Como que contagiado pela pressa do policial, também dirige-se rápido ao salão.E vê, na TV ligada há pouco pelo barman, a notícia de que Nova Iorque vive o caos e o pânico. Choques de dois aviões haviam transformando em um monte de escombros fumegantes as torres gêmeas do World Trade Center. Onde ficava o escritório do qual saíra, há 15 minutos, fugido de uma fatalidade.