sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Justo hoje
Pela vidraça frontal, ele vê o policial sair da viatura e cruzar a rua.” Vai entrar aqui”, imagina e, dirige-se ao banheiro.
Entrara no bar há uns cinco minutos, 10 após a morte de seu chefe.Os outros cinco gastara andando, rápido, até ali, a partir do escritório, local da tragédia.
Conhece o bar. Fica sempre vazio àquela hora da manhã. Desde sua entrada, à exceção dele, apenas o barman está no recinto, limpando uns copos.
È ali que pretende raciocinar sobre o que acontecera há pouco. Tomar decisões.Sabe que, a partir de agora, sua vida jamais será a mesma.Está entre ser um presidiário ou um foragido. Ao entrar na garganta do chefe, o estilete de cortar papéis matara, também, qualquer aspiração sua a uma existência comum, de sonhos a realizar; de realidades com que sonhar.
No banheiro, tenta lembrar o que aconteceu. Ajuda-o o controle das emoções, o que,aliás, é a mais forte característica de sua personalidade. Incontáveis foram as vezes, em seus 30 anos de vida, em que adotara atitudes serenas, enquanto um vulcão revolvia-lhe a alma.” Sangue de barata” é o nome que sua ex-mulher dá a essa sua incapacidade de “chutar o pau da barraca”, como se diz por aí.
Mas ele é assim e a vista não se lhe toldou de vermelho nem mesmo no instante em que a lâmina soltou-se daquela carótida, causando, com sua queda, um esguicho de sangue, Quando o corpo rotundo do chefe tombou sobre o tapete, nem isso permitiu que as emoções tomassem-lhe o lugar dos pensamentos.Nada que o levasse a priorizar uma grito, uma correria incerta, um apelo. Aproximou-se do corpo, certificou-se da morte, abriu a porta da sala, saiu,fechando-a atrás de si, Atravessou o corredor entre os cubículos nos quais abrigavam-se os demais funcionários; chegou ao corredor externo e só acelerou os passos na escada, que preferiu ao elevador. Afinal, o escritório fica no quarto andar e, pelos degraus, era mais fácil , rápido e seguro atingir a rua, antes que se descobrisse o ocorrido.
Entre os funcionários, apenas a secretária entrava com frequência na sala do chefe e,mesmo assim, se chamada. Era quase certo que, apenas passados uns 15 minutos sem ser acionada, ela resolvesse falar-lhe pelo intercomunicador, para transmitir algum recado. E, ante o inevitável silêncio, resolvesse ver o que estava acontecendo.
Teve tempo, assim, para , sem ser barrado,chegar à rua e, em seguida, ao bar, que já conhecia de inúmeros happy hours e almoços. É claro, não pretende esconder-se ali. É, digamos, uma pausa estratégica, para pensar. E agora o faz dentro do banheiro.Teria o policial entrado? Ou apenas atravessou a rua? Teria sido movimentação de rotina ou, como centenas de outros colegas, àquela altura, já estava atendendo ao alarme de assassinato?
Jamais planejara matar o chefe.Mas não podia negar as vezes em que isso lhe passara pela cabeça nos cinco anos de firma.Porque o homem era destes, não tão raros , que sentem um prazer sádico em humilhar subordinados.Com ele, fazia-o, de preferência, diante dos demais funcionários.E não deixava passar mais de uma semana entre uma humilhação e outra.A cada descompostura; a cada sobrecarga de trabalho desnecessária , o sangue fervia-lhe nas veias, como ferviam, no seio da montanha, lavas de um vulcão, cuja erupção, entretanto, cuidava de evitar.Aceleravam-se as batidas do coração, as têmporas latejavam, mas o semblante era de serenidade.Contida e humilde serenidade.Ajudava-o, é claro, o temperamento “ sangue de barata”, com o providencial reforço da necessidade do emprego.Ninguém, acreditaria, porém que não odiava o superior.
E o déspota tinha que desancá-lo justo hoje, quando dirigira-se ao trabalho ainda tendo a ecoar, no cérebro, as palavras da mulher,pedindo o divórcio.Chegado ao escritório,nem mesmo digerira a revelação que desestruturaria sua estabilidade familiar e o chefe já o chamava na sala, onde, nos cinco minutos seguintes, em meio aos sempre impressionantes acessos de fúria,mostrou-lhe o quanto o considerava incompetente, desprezível e sem futuro.
E também, justo hoje, resolveu retrucar. Contido, humilde, mas resolveu.Tão inesperada pareceu ao chefe a reação que este, após ouvi-lo , esbugalhou os olhos, como alguém à beira de uma apoplexia,rodeou a mesa e, à falta de uma palavra que definisse sua ira ante tanta insolência de um subordinado, empunhou o estilete de cortar papéis, aproximando-o do rosto do funcionário.
- Não sei onde estou com a cabeça que não…
A frase não terminou, pois , em um gesto instintivo de defesa, o subordinado segurou-lhe o punho, fazendo, sem querer,com que a lâmina virasse em sentido contrário.O impulso do corpanzil do chefe e a inércia cuidaram do resto.
Um acidente.Mas alguém acreditaria nisso? A descrença quanto a essa possibilidade foi que o fez pensar em fugir do prédio, antes de mais nada.Só ele e o chefe sabiam o que ocorrera naquela sala, de onde apenas um saiu vivo, cruzando o corredor entre cubículos . Maior suspeito de assassinato, impossível. Breve caçada humana, inevitável.
Interrompe a rememoração. Precisa saber se o policial entrara no bar.Por sorte, o conjunto de sanitários em que se esconde dá frente para o salão. E não tem porta: a divisória é uma cortina de tiras plásticas. É por entre elas que vê o policial. Aparenta tranquilidade e diz alguma coisa ao barman.
Refere-se o diálogo à sua presença? Se for, não há outra alternativa senão entregar-se. Fatalista, abre a porta do banheiro e sai, a tempo de verificar que o guarda , após ouvir, com expressão atônita, a mensagem que lhe era transmitida pelo radiocomunicador preso ao peito, corre para a porta da frente.
Como que contagiado pela pressa do policial, também dirige-se rápido ao salão.E vê, na TV ligada há pouco pelo barman, a notícia de que Nova Iorque vive o caos e o pânico. Choques de dois aviões haviam transformando em um monte de escombros fumegantes as torres gêmeas do World Trade Center. Onde ficava o escritório do qual saíra, há 15 minutos, fugido de uma fatalidade.
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