quinta-feira, 13 de junho de 2013

A arma do crime


- Ele era um homem grande, 1,80 metro de altura, pesava quase 100 quilos. Mas o tiro jogou-o a dois metros de distância, após despedaçar-lhe metade do crânio. Uma coisa horrível.

Quando foi fazer pesquisa naquela clínica, o jornalista estava apenas querendo obter informações para uma reportagem especial sobre o mal de Alzheimer, doença degenerativa do cérebro, que faz a pessoa, aos poucos, ir perdendo a memória e que tem uma característica diferente das moléstias semelhantes: o paciente esquece fatos recentes, mas lembra-se perfeitamente dos antigos.Na fase aguda, não consegue,por exemplo, lembrar-se de que almoçou, mas recorda-se de uma ceia de Natal da infância.

O jornalista e a diretora da clínica já haviam conversado sobre isso tudo.Escolhera aquela clínica por abrigar milionários ou personalidades das artes, política, negócios, etc, vítimas do mal. Isso daria um tempero especial à matéria, que revelaria os efeitos da doença no comportamento de quem, antes, comandara ou seduzira as massas.Firmara o compromisso de não revelar nomes, apenas casos.

A garantia do anonimato foi o que fez a diretora alongar-se sobre a ficha de determinados pacientes: a ex-atriz que, agora, zanzava pelo jardim repetindo dois ou três versos de Shakespeare:o antigo locutor de eventos esportivos que não falava mais; o ex-governador de Estado hoje apenas fazendo o que lhe ordenam ( comer, beber, andar), etc.

Alongava-se, naquele momento, a franzina médica no caso que parecia mais fasciná-la e que, como o jornalista saberia depois, fascinava a quem dele tivesse conhecimento: o do empresário que matara o único filho pensando tratar-se de um urso.

- É a prova de que nem todos os pacientes de Alzheimer podem ser mantidos em casa. A partir de certo estágio, suas atitudes tornam-se imprevisíveis; a única realidade presente é a do passado.Agem como se vivessem décadas atrás. Para evitar maiores danos, para eles e para quem com eles convive, o melhor a fazer é interná-los. Infelizmente, neste caso, a decisão só ocorreu após a tragédia.

E a diretora descreveu o assassinato , que não chegou a conhecimento público em razão da notoriedade de seu autor, um homem que não só detivera notável força econômica , mas, também, a inevitável influência política decorrente dela. Segundo os jornais da época, fora acometido de um irreversível dano neurológico apos tomar conhecimento da morte do filho em um assalto. Mas a médica sabia muito bem de toda a história, pois fora quem providenciara, às altas horas de determinada noite, a internação do assassino, aconselhada pelo advogado da família e autorizada por sua nora, logo após o encontro do corpo da vítima, com a cabeça estraçalhada por uma bala de grosso calibre, e do assassino, ainda com a arma quente nas mãos.O crime ocorrera na fazenda onde o empresário morava, com o filho e a nora, desde que o Alzhemier fora diagnosticado. Foi surpreendido na varanda da casa-sede, por um empregado, acordado pelo estampido. Balbuciava, de olhos fixos no portão coberto de folhagens: " Perfeito! Perfeito".

Até os policiais,que atenderam a ocorrência, acostumados a cenas de assassinatos, ficaram impressionados com o estrago causado pela arma do crime. Pudera. Tratava-se de um fuzil tcheco CZ 550, usado para matar elefantes, com capacidade para atingir alvos a um quilômetro de distância. A potência do impacto seria exagerada até para um urso , imagine,então, para um homem, que estava a pouco mais de 50 metros.

Os testes de balística, residuográficos, depoimento do empregado e demais circunstâncias não deixavam dúvidas de que o autor do disparo havia sido, mesmo, o empresário.

O assassinato havia ocorrido há mais de 10 anos, mas a médica relatava-o como se fossem 10 dias.Sua ênfase narrativa despertou no jornalista a curiosidade do reporter policial do início da carreira.

- É possível conversar com o paciente?

Era, sim- respondeu a diretora-clínica. Desde , é claro, que não fosse uma entrevista. Nada de gravador, nem anotações, portanto.

O homem que estava ali, ao lado do jornalista aparentava pouco os 65 anos de idade. Os cabelos grisalhos e ralos, as rugas,mais acentuadas na testa, dando-lhe uma permanente expressão de perplexidade, tornavam-se insignificantes, como sinais de velhice, ante os fortes músculos dos braços e pernas, o tórax proeminente, que nem a barriga, já um tanto rotunda, conseguia camuflar.Tudo isso espalhado por algo que o jornalista calculou entre 100 quilos e 1,90 metro de altura.

O enfermeiro que os apresentara mantinha-se alguns metros afastado, atitude mais ditada pela discreção do que por cautela. A diretora clínica explicara que o paciente era tranquilo, calado a maior parte do tempo.Quando disposto a conversar, detinha-se quase sempre em um assunto único: caçadas. Seu lugar preferido na clínica era aquele banco sob uma mangueira e perto do lago em cujas margens perfilavam-se os chalés dos internos.

- A moça ainda não apareceu?- perguntou, sem olhar para o jornalista, quebrando o silêncio que se seguiu à apresentação.

O jornalista já esperava a pergunta, alertado pela diretora clínica de que o paciente a fazia com frequência, sem esperar resposta. Havia uma opinião generalizada de que se referia à nora, com quem vivera por muitos anos até o dia da tragédia.Compreensivelmente, a mulher nunca mais aparecera desde o dia da internação. Sabia-se que vivia modestamente com parentes, em uma cidade do sul.Casada em regime de separação total de bens, a mulher nada herdara com a trágica morte do marido.A manutenção do fazendeiro na sofisticada clínica era feita por um fundo financeiro que administrava suas empresas desde o diagnóstico do mal de Alzheimer.

- Então quer dizer que o senhor é jornalista? Gosto de falar com jornalistas. Vocês também são caçadores, à sua maneira.A única diferença é que vocês se contentam em descobrir a caça, nós, não: descobrimos e a abatemos.

- Gostaria que me contasse alguma de suas histórias de caça- perguntou o jornalista, ciente de que estava sendo movido pela morbidez de fazê-lo narrar a história do urso. Mas o paciente não parecia disposto a isso. Discorreu sobre uma série de façanhas: abates de jacarés e aves no Pantanal; de antílopes e felinos em savanas africanas, sempre como se tivesse referindo-se a fatos contemporâneos.Era o Alzheimer em seu alto grau- pensou o jornalista. Não se recorda do café da manhã, mas detalha caçadas de décadas atrás.As narrações eram enriquecidas com informações técnicas sobre cada tipo de caça, de armadilha, de tocaia, de armas. O jornalista resolveu forçar-lhe a memória.

- O senhor já caçou ursos?

- Apenas um.

Surpreendido pela rápida resposta e com receio de que alguma pausa no diálogo, por menor que fosse, levasse novamente à obscuridade aquela lembrança , lançou a segunda pergunta:

- Como foi essa caçada?

- Não foi uma caçada. Foi uma necessidade.Ele era uma ameaça. Aparecia toda madrugada na fazenda. Ousado. Vinha até o portão da sede.Era grande. Se atacasse um de nós, não teríamos a menor chance.

-Mas existem ursos no Brasil?

- Claro que não. Isso não é animal de região quente. É de regiões frias. Esse que matei deve ter escapado de algum zoológico, ou circo. Não sei que diabos viu na minha fazenda para ficar zanzando por aqui.Mas ele não contava com minha boa mira, nem meu poderoso rifle. Nós estávamos prontinhos para ele. Foi um tiro só. Perfeito.

Insensata? Inoportuna? Desumana? Mórbida? Oportunista? O jornalista não se preocupou em definir a pergunta, quando a fez, à queima roupa:

- O senhor tem filhos?

- Tenho. Apenas um. Já é um homem, casado. Um bom sujeito, com o terrível defeito de não gostar de caçar. Pelo menos de caçar animais, se é que você me entende.

O empresário, que o tempo todo falava sem fitar o interlocutor, mantendo o olhar em um ponto indefinido no lago, agora encarava o jornalista, com ar matreiro.

- Não pode ver um rabo de saia.Não sei a quem puxou.Deus sabe que

não foi a mim. Enquanto sua mãe viveu, fui homem de uma mulher só.E até hoje tenho dificuldade para fazer novos relacionamentos. Acho que por causa da memória da companheira. Mas ele, não. A esposa fica aí e ele sai à caça. Nem se dá ao trabalho de disfarçar. Também, esta moça não reclama, parece que nunca desconfia de nada. Se eu aprontasse com a patroa metade do que meu filho apronta com a mulher dele, acho que a velha me quebrava a cabeça.Às vezes até que dou razão ao rapaz.Pude ser fiel a vida inteira porque tinha outro amor: as caçadas. Meu filho não tem. E todo homem precisa de vários amores. Ele os busca em outras mulheres.Não me importo com isso. Só me importava até umas semanas atrás.

O paciente calou-se, reforçando o suspense que a própria frase sugeria.

- Por que? Interpelou o jornalista.

- Por causa do urso, ora! Chegando toda madrugada, bêbado, ele ia ser uma presa fácil do bicho! Mas eu resolvi o problema. Um tiro só. Perfeito.

O enfermeiro aproximou-se e o jornalista entendeu que a conversa deveria ser encerrada. Ao vê-lo , o paciente indagou:

- A moça ainda não apareceu?

O enfermeiro sabia que não precisava responder. Qualquer reposta seria esquecida pelo paciente meia hora depois e ele certamente a repetiria a questão ao primeiro interlocutor que aparecesse. Pegou-o suavemente pelo braço direito e ambos caminharam em direção ao prédio principal da clínica.

.

- E então? O que achou?

O tom de voz da diretora-clínica , assim que o jornalista entrou de novo em seu escritório, trazia aquela ansiedade de quem quer saber se o presenteado gostou do que acabara de desembrulhar.

- É, realmente, uma história fascinante. Difícil ficar indiferente ouvindo um pai contar como matou o próprio filho, achando que, ao fazer isso, salvou-lhe a vida.

- Como eu previa, este caso atingiu forte sua sensibilidade. Imagine, então como afetou a nós, que o testemunhamos desde o início.

- Não tenho dúvidas de que deve ter sido uma experiência marcante.

Vou mostrar-lhe, agora, uma coisa que o fará emocionar-se mais ainda.

Minutos depois, o jornalista tinha, em mãos, a arma utilizada, guardada por uma década no armário maior do setor de arquivos da clínica.O fuzil sueco CZ 550, capaz de atingir um elefante a um quilômetro e matá-lo, era leve. Uns três quilos, se tanto.

- É uma arma feita para caçar elefantes, animais dos trópicos. Não pode ser muito pesada, pois seria difícil levá-la através da selva quente ou de desertos. Dispara quatro tiros, antes de precisar ser recarregada.

Diante do ar de espanto do jornalista, face àquela demonstração de conhecimentos bélicos, a diretora concluiu:

- Isso tudo me foi explicado pelos policiais, naquele dia fatídico.

Ao sair da clínica, o jornalista sabia que jamais esqueceria tal história . E, como a ratificar tal certeza, colocar um selo imperecível naquelas lembranças, lá estava, dirigindo-se lentamente ao seu chalé, de braços dados com uma enfermeira, a principal personagem da tragédia. Não resistiu ao desejo de despedir-se, movido por um impulso emocional, talvez de pena, ou agradecimento pela atenção que lhe fora dada ( quem sabe as duas coisas juntas). Aproximou-se e, antes de falar , o paciente se antecipou:

- A moça, ainda não apareceu?

Vou responder- pensou o jornalista. Não posso recusar-lhe essa atenção mínima.

- Não. Ainda não apareceu, mas logo vai estar por aqui.

E então, o homem, que havia matado o filho imaginando ser ele um urso, recolheu o olhar vago da superfície do lago; mirou no jornalista e exultou:

- Perfeito! Preciso dizer a ela que não precisa mais ficar com medo. Não há mais perigo. Já matei o urso que ela descobriu. Só precisei ficar umas quatro noites de tocaia no local que ela me indicou. É isso que eu preciso dizer-lhe.

O jornalista teve, então, a certeza de que a arma do crime, realmente, era excepcional. Tinha acabado de falar com ele.

 

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