quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Uma casa só vê e ouve

Uma casa não tem controle sobre seu destino, nem sobre o destino de ninguém.É planejada, construída, reformada, reduzida,ampliada, destruída, à sua revelia.Uma casa não controla sequer sua degradação, que fica por conta dos insetos, das chuvas, dos ventos, do passar implacável dos anos.

Uma casa não determina o destino dos que nela residem ou simplesmente pernoitam. Mas ela os vê e os ouve.

Eu, por exemplo, olho e escuto o que fazem meus donos. Quando eles estão aqui,é claro, pois sou uma casa de praia e, como o tempo quente, no litoral norte paulista, dura menos de dois meses, é este o período médio anual em que os ouço e vejo. Não sou mansão luxuosa, mas admito ser bem confortável para uma casa de praia. Com dois andares, faço frente para a avenida da orla e fundos para o mar. O acesso à praia é pela porta na base da escada que liga a área de serviço ao segundo pavimento ( a outra escada é a que une a sala frontal, na parte inferior, aos dormitórios, em cima).

Não tenho caseiros. Meu dono não vê necessidade disso, pois mora na capital, a apenas 50 quilômetros daqui.De vez em quando, principalmente em fins de semana,ele aparece , faz uma vistoria geral e, se constata algum problema, um vazamento,uma sujeira,chama alguém da vila para solucionar. Às vezes faz isso nas férias de verão.No inverno, ele, a mulher e a filha, de pouco mais de 20 anos, costumam usar a casa para pernoitar , seguindo no outro dia bem cedo a Paraty, no Rio de Janeiro,onde, durante esta estação, ficam por alguns dias.

Foi numa destas baldeações que ocorreu aquilo.

Certo final de tarde. meu dono apareceu, sozinho, como de outras vezes. A novidade foi que arrombou a fechadura da porta dos fundos , deixou-a encostada e foi embora. Não retornou.

No outro dia, também ao entardecer,chegaram apenas mãe e a filha. Assemelham-se a irmãs,tal a elegância e agilidade ainda conservadas na mulher mais velha.Iriam a Paraty na manhã seguinte,sozinhas, pois o homem ficara na Capital , tratando de alguns negócios, e as encontraria depois,na cidade fluminense. Isso também ocorrera em outras ocasiões.E, tal qual nas vezes passadas, a mãe acomodou-se no quarto do casal e a filha no segundo quarto de hóspedes,no outro extremo do corredor.

Repito-lhes o que ouvi naquela noite, por volta das 23 horas:

" Doutor, estou falando no telefone do quarto, como o combinado. Para o senhor ter a certeza de que estou mesmo aqui.Pode ver o número aí no identificador de chamadas. Que gritaria é esta ? Ah! O senhor está na pizzaria, com alguns amigos. Entendi. É o álibi. Pois bem: o serviço está feito.Pode se considerar livre da jararaca.Mas não foi bem como o senhor disse. Quando entrei no quarto, estava tudo apagado, só tinha aceso um abajur fraco e sua mulher não estava no quarto,dormindo. Se estivesse, a coisa seria mais rápido e mais fácil, era só um sufoco na cama. Tive de esperar atrás da porta para, quando ela entrar, atacar antes que acendesse a luz. O jeito foi lhe quebrar o pescoço.Nada fácil porque a mulher era bem forte para a idade. Mas fica tranquilo que não houve grito,nem barulho. Sou bom nisso e não teve erro. Agora, o seguinte: em que lugar do quarto estão os cinco mil da segunda parte do pagamento do serviço? ... Na segunda gaveta da onde?... Da cômoda? Embaixo da caixa de jóias? Falou... Já vi... . Vou levar as jóias também . E o relógio em cima do criado mudo.Assim fica mais claro que houve assalto... Já sei... Não precisa repetir que preciso sair por onde entrei e deixar a porta aberta. Afinal, quem é que arromba uma porta, assalta uma casa, e, ao sair , tem o cuidado de fechar a porta ? .. Ok! Não vou mais ligar para este número.Sei que não vai adiantar porque é celular pirata e o senhor vai jogá-lo fora na primeira oportunidade. Tchau e até outra vez."



Uma casa, já disse,ouve,mas também vê.E o que vi,naquela noite, momentos antes de escutar o telefonema, foi o seguinte: a mãe levantou-se e dirigiu-se ao quarto onde estava a filha. " Não consigo dormir por causa de uma dor de cabeça horrorosa. Você não podia dar-me um desses seus comprimidos contra enxaqueca"?, disse. " Não quer que eu lhe faça também uma massagem no pescoço e nos ombros?", respondeu a jovem. " É uma boa idéia. Vá ao meu quarto e pega aquele creme que eu uso para massagear o rosto".

A moça foi.

Sou apenas uma casa. Vejo e ouço, mas não determino o destino de ninguém.

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