
- Você não me deu atenção e, agora, a minha amiga morreu!
A voz do Domenico, ao telefone, revelava dor e revolta.Fazia sentido. Seis
meses antes, a amiga dissera-lhe que temia ser morta pelo marido. Descobrira
que , antes de se casarem,ele enviuvara por três vezes. Convencido das razões
dela, pediu-me que investigasse o sujeito.Não convencido, não investiguei.
- Morreu de quê?
- De infarto.
Nenhuma novidade. As outras três mulheres também haviam morrido de causas
naturais.Tínhamos um empate, até então: dois infartos e dois derrames.Poderia
ter repetido a meu amigo que nada havia a ser apurado; para ele esquecer aquele
assunto, porém, levando em conta o momento de dor e angústia dele e, admitamos,
certo peso de consciência meu, convidei-o para uma conversa em meu escritório.
Vejo à minha frente, agora, um homem dominado pelo desalento:
- A gente poderia ter evitado... Você poderia ter evitado...
- O quê? Um infarto? O médico não lhe disse que ela tinha problemas de coração
há muitos anos, vivendo sob permanentes cuidados médicos? E que um infarto era
iminente, até porque se tratava de uma septuagenária?
- Sim, mas , e as outras?
- Pelo que sabemos, todas tiveram mortes normais, se é que podemos chamar a
morte de normal em qualquer circunstâcia. Os médicos atestaram as causas ,
mostraram históricos clínicos, etc, etc.
- Mas você há de convir que foi muito estranho ele esconder de minha amiga
as três primeiras viuvezes. Quando se conheceram, disse que tinha se casado
apenas uma vez. Ela descobriu a existência das duas primeiras ex-esposas por
acaso, mexendo em uns documentos. Não é esquisito? Foi isso que a vez ficar
desconfiada e comunicar-me seu receio de que algo funesto lhe pudesse ocorrer.
- Ele pode ter omitido as tres três viuvezes anteriores por medo de que sua
amiga não casasse com ele.Afinal, mesmo podendo provar a naturalidade das
mortes das ex-mulheres, não poderia evitar que a então namorada visse nele um
urubu de mau agouro, não é mesmo?
Meu pequeno gracejo deixou Domênico mais relaxado.Aproveitei para arrastá-lo
ao café do térreo, nosso ponto preferido para conversações . Entre um gole e
outro de cremoso com raspas de limão, procurei convencê-lo que o caso tinha
muito de bizzaria e nada de criminoso. Afinal, minha experiência de 30 anos em
investigações criminais não lhe garantiam nada?
- Em consideração à memória de minha amiga, não dava para você tentar
levantar alguma coisa?
Seus olhos eram súplices e foi mais em consideração a eles que resolvi
colocar meu nariz no asssunto.. E o que obtive, após alguns dias, foi os
seguinte: 1) duas das ex- mulheres tinham 65 anos; uma 68 e a outra , a amiga
de meu amigo, 70; 2) todas com saúde precária, o que não é de se admirar; 3) o
sujeito tinha 51 anos e , a não ser por uma tosse nervosa, saúde de ferro. A
primeira conclusão ante tais fatos é a altíssima probabilidade das mulheres
morrerem antes dele.
Teríamos, então, um padrão? Ele as escolhera na certeza da própria viuvez.?
Que, se não ocorresse naturalmente, poderia ser ajudada sem grandes esforços:
um susto aqui para causar infarto; um pouquinho de sal a mais na comida ali
para detonar derrames? Tudo muito lógico, se os relatórios médicos não
mostrassem o contrário. Nada de fatores precipitantes, apenas o curso normal da
vida e da morte. E depoimentos de familiares e amigos, tomados da maneira mais
discreta possível, revelaram-me um marido atencioso, fiel, regrado, com quem
uma mulher poderia até morrer de tédio, mas não de sustos.E mais: todas elas
passaram a ter melhores planos de saúde, pagos por ele, após o casamento.
Era o que estava dizendo a meu amigo, no primeiro relatório após minha saída
a campo, quando me interrompeu, excitado:
- Está evidente. Ao escolher mulheres doentes que, com certeza, morrerão
antes dele, segue um plano meticuloso!
- Está bem-retruquei. E qual o motivo?.
- Dinheiro!
- Não. Todos os casamentos foram contraídos no regime de comunhão parcial de
bens. Ou seja, um não herdaria bens amealhados antes pelo outro.E mesmo que
fosse comunhão total, não há nada proibindo alguém de ficar com os bens do
cônjuge morto do jeito que Deus e a lei permitem Além disso, o sujeito tem mais
posses que as quatro mulheres juntas.Era mais provável que elas o matassem por
dinheiro do que ele a elas. Duas eram viúvas, vivendo das modestas pensões dos
ex-maridos, e as outras duas, soleironas aposentadas.É relevante acrescentar
que seus bens foram adquiridos de maneira honesta, em mais de 30 anos de trabalho
como advogado.
- Então, ele é um psicopata.
- Deve ser um caso único na psicopatologia criminal.Posso até ver as
manchetes: “ Casava com mulheres mais velhas e doentes só para vê-las morrer,
de morte natural, antes dele!” .
- Pode brincar, mas ainda acho muito esquisito essa sucessão de viuvezes..
- Pode ser esquisito, mas não criminoso.Portanto, não há nada a ser
investigado.
Ao separarmo-nos, senti que, apesar da minha forte argumentação, meu amigo
não estava totalmente convencido. E , dias depois, procurou-me, mais excitado
ainda.
- Descobri uma coisa que pode levar-nos a concluir este caso.
Como se vê, já éramos parceiros em uma investigação criminal
- Havia algo em comum entre as mulheres- continuou, sem dar-me tempo para
qualquer pergunta. As quatro tinham jazigos, adquiridos em cemitérios
particulares, estes memoriais que proliferam por aí.
Parou e recuperava o fôlego, com ar triunfante, enquanto eu tentava entender
por que o fato de terem literalmente onde cair mortas levaria um homem a
casar-se com mulheres mais velhas , doentes e metaforicamente sem terem onde
cair mortas.. Ousei expor a dúvida, o que o deixou perto de um estado de fúria:
- E sou eu que tenho de saber? Não é você o detetive? Apenas trouxe os fatos
novos, que você não teve a competência de levantar antes.
Dito isso, pontuando palavras enfáticas com largos gestos, foi embora.
Minutos após sua saída, conclui ser bem razoável a descoberta. Um homem casa
com mulheres pelo menos 20 anos mais velhas; com moléstias graves, todas
proprietárias de jazigos particulares... Não. Não podia ser tudo coincidência.Estava
na hora do ataque frontal. Eu e o bizarro multiviúvo precisávamos conversar.
Aceitar o convite para uma entrevista mesmo sabendo que eu era investigador
de polícia- e de minha intenção de apurar fatos relacionados a seus últimos
quatro casamentos- não foi o que mais me surpreendeu naquele homem. O inusitado
foi ele dizer que já estava esperando há muito tempo um contato daquele tipo.
E, quando me vi em seu escritório doméstico,ele por trás de uma escrivaninha
de modelo antigo;eu na poltrona em frente, como um candidato a emprego diante
do futuro patrão, outra não poderia ser a minha primeira pergunta:
- Por que o senhor estava aguardando há muito tempo um contato comigo?
- Não era bem com o senhor-respondeu, pausadamente. Tinha uma voz suave , compatível
com sua baixa estatura, um metro e sessenta e cinco, se tanto, e massa ( uns 70
quilos, se muito).
- Na verdade- continuou- eu esperava a visita de um representante de
polícia, que tanto poderia ser o senhor, como outro.
Fui, então, direto ao assunto. Disse que estava ali em carater informal,
pois não havia nenhum procedimento investigatório oficial contra ele. Agradeci
por ter-me recebido. Expliquei o que me motivara a procurá-lo, as suspeitas de
sua última esposa, a interferência de meu amigo, etc.
Continuou não se mostrando surpreso.Passou a mão direita pelos já ralos fios
de cabelos no alto da cabeça, recostou-se no espaldar alto da cadeira, e abriu
o verbo.
- Sim, seu amigo está certo. Nada foi coincidência, nem mesmo os jazigos
particulares, pois fui eu que os comprei..As mulheres foram escolhidas por
causa de todas as caracteractísticas já citadas.Cuidei delas o melhor que pude,
mas tendo a quase certeza de que não conseguiria evitar que morressem antes de
mim.Era isso que eu esperava, mas, é claro, que não ocorresse por minha causa.
Daí minha preocupação com a saúde delas, seu bem estar. As duas primeiras não
tiveram nenhum motivo de queixas.
- E as outras? Que queixas tiveram?- perguntei, camuflando a ansiedade
gerada por uma possibilidade que nem eu mesmo sabia aquilatar qual seria.
- Reclamaram da mesma coisa: de terem descoberto, por acaso, que eu não
enviuvara apenas uma vez, como lhes havia dito antes do casamento.É claro que
eu mesmo encarreguei-me de que as duas descobrissem, como se fosse por acaso, a
existência das outras viuvezes.
- E por que fez isso?
- Para que ficassem desconfiadas e, de uma maneira ou de outra, fizessem os
fatos chegarem ao conhecimento da policia. A terceira ficou meio chateada uns
dias, mas não mais tocou no assunto, de onde concluí que não fora afetada além
disso. Já a quarta, a amiga de seu amigo, fez exatamente o que eu esperava:
mentalizou suspeitas, que acabaram contaminando terceiros, principalmente a
polícia.
- Isso é profundamente contraditório. Se o senhor não cometeu nenhum crime;
parece que foi até um benfeitor, por que, mesmo assim, fez tudo para que
pensassemos o contrário.Com que objetivo?
O homem levantou-se, contornou a mesa. Previ que iria começar uma
argumentação lógica. Era, afinal, um advogado, com experiência em júris, igual
a muitos que eu vira atuar em julgamenos ao longo de minha carreira policial.
- Se o senhor olhar em volta, verá que a maioria dos livros nessas estantes
é da área criminal. Observando melhor, notará que pelo menos metade das
prateleiras abriga relatos de fatos policiais.Sou mais que um profissional do
assunto, sou um estudioso.
Fez uma pausa, como a me dar tempo para confirmar suas palavras, o que fiz
percorrendo com o olhar os quatro cantos da biblioteca.
- Minha primeira esposa – prosseguiu- foi a mulher a quem realmente
amei.Fomos casados por 15 anos.Após sua morte, pensei ter perdido o sentido da
existência. Descartei qualquer possibilidade de novos casamentos, a não ser que
tivesse, para isso, um motivo mais forte do que solidão e sexo. E esta
motivação chegou quando descobri que poderia conciliar casamentos com a
montagem de uma tese jurídica sobre um assunto que foi minha obsessão por mas
de 20 anos: o das evidencias de um crime. Quantos clientes tive que foram condenados
com base apenas nas evidências coletadas por policiais? Apoiadas nelas,
promotores hábeis convenceram jurados a colocarem homens inocentes atrás das
grades.
- E o senhor acha que conseguiu avanço em sua tese com estes casamentos
planejados?
- Tive certeza disso quando o senhor, considerado o mais hábil – e, por
isso, mais famoso- detetive da cidade, telefonou-me para marcar essa
entrevista. Consegui incitá-lo a começar uma investigação e concluir, por
dedução própria, que evidências não garantem crimes. E mais: que por trás de um
comportamento aparentemente criminoso pode esconder-se toda uma ação de
benemerência.
- E isso terá alguma utilidade maior, além de agradar a seu ego pelo fato de
ter manipulado e humilhado um policial?
- Toda essa história que vivi e que o senhor, sem querer, acabou vivendo,
está documentada. Será de grande valia para a análise de criminalistas futuros.
Dito isso, levantou-se, calmamente, e despediu-se. De volta ao meu
escritório, repassando essa trama maluca, sem coragem de concluir se o seu
principal protagonista também o era, montei a minha própria tese: a de que, se
isso fosse literatura, teríamos o primeiro conto policial sem crime, nem
solução.