quinta-feira, 13 de junho de 2013

Viuvezes


- Você não me deu atenção e, agora, a minha amiga morreu!

A voz do Domenico, ao telefone, revelava dor e revolta.Fazia sentido. Seis meses antes, a amiga dissera-lhe que temia ser morta pelo marido. Descobrira que , antes de se casarem,ele enviuvara por três vezes. Convencido das razões dela, pediu-me que investigasse o sujeito.Não convencido, não investiguei.

- Morreu de quê?

- De infarto.

Nenhuma novidade. As outras três mulheres também haviam morrido de causas naturais.Tínhamos um empate, até então: dois infartos e dois derrames.Poderia ter repetido a meu amigo que nada havia a ser apurado; para ele esquecer aquele assunto, porém, levando em conta o momento de dor e angústia dele e, admitamos, certo peso de consciência meu, convidei-o para uma conversa em meu escritório.

Vejo à minha frente, agora, um homem dominado pelo desalento:

- A gente poderia ter evitado... Você poderia ter evitado...

- O quê? Um infarto? O médico não lhe disse que ela tinha problemas de coração há muitos anos, vivendo sob permanentes cuidados médicos? E que um infarto era iminente, até porque se tratava de uma septuagenária?

- Sim, mas , e as outras?

- Pelo que sabemos, todas tiveram mortes normais, se é que podemos chamar a morte de normal em qualquer circunstâcia. Os médicos atestaram as causas , mostraram históricos clínicos, etc, etc.

- Mas você há de convir que foi muito estranho ele esconder de minha amiga as três primeiras viuvezes. Quando se conheceram, disse que tinha se casado apenas uma vez. Ela descobriu a existência das duas primeiras ex-esposas por acaso, mexendo em uns documentos. Não é esquisito? Foi isso que a vez ficar desconfiada e comunicar-me seu receio de que algo funesto lhe pudesse ocorrer.

- Ele pode ter omitido as tres três viuvezes anteriores por medo de que sua amiga não casasse com ele.Afinal, mesmo podendo provar a naturalidade das mortes das ex-mulheres, não poderia evitar que a então namorada visse nele um urubu de mau agouro, não é mesmo?

Meu pequeno gracejo deixou Domênico mais relaxado.Aproveitei para arrastá-lo ao café do térreo, nosso ponto preferido para conversações . Entre um gole e outro de cremoso com raspas de limão, procurei convencê-lo que o caso tinha muito de bizzaria e nada de criminoso. Afinal, minha experiência de 30 anos em investigações criminais não lhe garantiam nada?

- Em consideração à memória de minha amiga, não dava para você tentar levantar alguma coisa?

Seus olhos eram súplices e foi mais em consideração a eles que resolvi colocar meu nariz no asssunto.. E o que obtive, após alguns dias, foi os seguinte: 1) duas das ex- mulheres tinham 65 anos; uma 68 e a outra , a amiga de meu amigo, 70; 2) todas com saúde precária, o que não é de se admirar; 3) o sujeito tinha 51 anos e , a não ser por uma tosse nervosa, saúde de ferro. A primeira conclusão ante tais fatos é a altíssima probabilidade das mulheres morrerem antes dele.

Teríamos, então, um padrão? Ele as escolhera na certeza da própria viuvez.? Que, se não ocorresse naturalmente, poderia ser ajudada sem grandes esforços: um susto aqui para causar infarto; um pouquinho de sal a mais na comida ali para detonar derrames? Tudo muito lógico, se os relatórios médicos não mostrassem o contrário. Nada de fatores precipitantes, apenas o curso normal da vida e da morte. E depoimentos de familiares e amigos, tomados da maneira mais discreta possível, revelaram-me um marido atencioso, fiel, regrado, com quem uma mulher poderia até morrer de tédio, mas não de sustos.E mais: todas elas passaram a ter melhores planos de saúde, pagos por ele, após o casamento.

Era o que estava dizendo a meu amigo, no primeiro relatório após minha saída a campo, quando me interrompeu, excitado:

- Está evidente. Ao escolher mulheres doentes que, com certeza, morrerão antes dele, segue um plano meticuloso!

- Está bem-retruquei. E qual o motivo?.

- Dinheiro!

- Não. Todos os casamentos foram contraídos no regime de comunhão parcial de bens. Ou seja, um não herdaria bens amealhados antes pelo outro.E mesmo que fosse comunhão total, não há nada proibindo alguém de ficar com os bens do cônjuge morto do jeito que Deus e a lei permitem Além disso, o sujeito tem mais posses que as quatro mulheres juntas.Era mais provável que elas o matassem por dinheiro do que ele a elas. Duas eram viúvas, vivendo das modestas pensões dos ex-maridos, e as outras duas, soleironas aposentadas.É relevante acrescentar que seus bens foram adquiridos de maneira honesta, em mais de 30 anos de trabalho como advogado.

- Então, ele é um psicopata.

- Deve ser um caso único na psicopatologia criminal.Posso até ver as manchetes: “ Casava com mulheres mais velhas e doentes só para vê-las morrer, de morte natural, antes dele!” .

- Pode brincar, mas ainda acho muito esquisito essa sucessão de viuvezes..

- Pode ser esquisito, mas não criminoso.Portanto, não há nada a ser investigado.

Ao separarmo-nos, senti que, apesar da minha forte argumentação, meu amigo não estava totalmente convencido. E , dias depois, procurou-me, mais excitado ainda.

- Descobri uma coisa que pode levar-nos a concluir este caso.

Como se vê, já éramos parceiros em uma investigação criminal

- Havia algo em comum entre as mulheres- continuou, sem dar-me tempo para qualquer pergunta. As quatro tinham jazigos, adquiridos em cemitérios particulares, estes memoriais que proliferam por aí.

Parou e recuperava o fôlego, com ar triunfante, enquanto eu tentava entender por que o fato de terem literalmente onde cair mortas levaria um homem a casar-se com mulheres mais velhas , doentes e metaforicamente sem terem onde cair mortas.. Ousei expor a dúvida, o que o deixou perto de um estado de fúria:

- E sou eu que tenho de saber? Não é você o detetive? Apenas trouxe os fatos novos, que você não teve a competência de levantar antes.

Dito isso, pontuando palavras enfáticas com largos gestos, foi embora. Minutos após sua saída, conclui ser bem razoável a descoberta. Um homem casa com mulheres pelo menos 20 anos mais velhas; com moléstias graves, todas proprietárias de jazigos particulares... Não. Não podia ser tudo coincidência.Estava na hora do ataque frontal. Eu e o bizarro multiviúvo precisávamos conversar.

Aceitar o convite para uma entrevista mesmo sabendo que eu era investigador de polícia- e de minha intenção de apurar fatos relacionados a seus últimos quatro casamentos- não foi o que mais me surpreendeu naquele homem. O inusitado foi ele dizer que já estava esperando há muito tempo um contato daquele tipo.

E, quando me vi em seu escritório doméstico,ele por trás de uma escrivaninha de modelo antigo;eu na poltrona em frente, como um candidato a emprego diante do futuro patrão, outra não poderia ser a minha primeira pergunta:

- Por que o senhor estava aguardando há muito tempo um contato comigo?

- Não era bem com o senhor-respondeu, pausadamente. Tinha uma voz suave , compatível com sua baixa estatura, um metro e sessenta e cinco, se tanto, e massa ( uns 70 quilos, se muito).

- Na verdade- continuou- eu esperava a visita de um representante de polícia, que tanto poderia ser o senhor, como outro.

Fui, então, direto ao assunto. Disse que estava ali em carater informal, pois não havia nenhum procedimento investigatório oficial contra ele. Agradeci por ter-me recebido. Expliquei o que me motivara a procurá-lo, as suspeitas de sua última esposa, a interferência de meu amigo, etc.

Continuou não se mostrando surpreso.Passou a mão direita pelos já ralos fios de cabelos no alto da cabeça, recostou-se no espaldar alto da cadeira, e abriu o verbo.

- Sim, seu amigo está certo. Nada foi coincidência, nem mesmo os jazigos particulares, pois fui eu que os comprei..As mulheres foram escolhidas por causa de todas as caracteractísticas já citadas.Cuidei delas o melhor que pude, mas tendo a quase certeza de que não conseguiria evitar que morressem antes de mim.Era isso que eu esperava, mas, é claro, que não ocorresse por minha causa. Daí minha preocupação com a saúde delas, seu bem estar. As duas primeiras não tiveram nenhum motivo de queixas.

- E as outras? Que queixas tiveram?- perguntei, camuflando a ansiedade gerada por uma possibilidade que nem eu mesmo sabia aquilatar qual seria.

- Reclamaram da mesma coisa: de terem descoberto, por acaso, que eu não enviuvara apenas uma vez, como lhes havia dito antes do casamento.É claro que eu mesmo encarreguei-me de que as duas descobrissem, como se fosse por acaso, a existência das outras viuvezes.

- E por que fez isso?

- Para que ficassem desconfiadas e, de uma maneira ou de outra, fizessem os fatos chegarem ao conhecimento da policia. A terceira ficou meio chateada uns dias, mas não mais tocou no assunto, de onde concluí que não fora afetada além disso. Já a quarta, a amiga de seu amigo, fez exatamente o que eu esperava: mentalizou suspeitas, que acabaram contaminando terceiros, principalmente a polícia.

- Isso é profundamente contraditório. Se o senhor não cometeu nenhum crime; parece que foi até um benfeitor, por que, mesmo assim, fez tudo para que pensassemos o contrário.Com que objetivo?

O homem levantou-se, contornou a mesa. Previ que iria começar uma argumentação lógica. Era, afinal, um advogado, com experiência em júris, igual a muitos que eu vira atuar em julgamenos ao longo de minha carreira policial.

- Se o senhor olhar em volta, verá que a maioria dos livros nessas estantes é da área criminal. Observando melhor, notará que pelo menos metade das prateleiras abriga relatos de fatos policiais.Sou mais que um profissional do assunto, sou um estudioso.

Fez uma pausa, como a me dar tempo para confirmar suas palavras, o que fiz percorrendo com o olhar os quatro cantos da biblioteca.

- Minha primeira esposa – prosseguiu- foi a mulher a quem realmente amei.Fomos casados por 15 anos.Após sua morte, pensei ter perdido o sentido da existência. Descartei qualquer possibilidade de novos casamentos, a não ser que tivesse, para isso, um motivo mais forte do que solidão e sexo. E esta motivação chegou quando descobri que poderia conciliar casamentos com a montagem de uma tese jurídica sobre um assunto que foi minha obsessão por mas de 20 anos: o das evidencias de um crime. Quantos clientes tive que foram condenados com base apenas nas evidências coletadas por policiais? Apoiadas nelas, promotores hábeis convenceram jurados a colocarem homens inocentes atrás das grades.

- E o senhor acha que conseguiu avanço em sua tese com estes casamentos planejados?

- Tive certeza disso quando o senhor, considerado o mais hábil – e, por isso, mais famoso- detetive da cidade, telefonou-me para marcar essa entrevista. Consegui incitá-lo a começar uma investigação e concluir, por dedução própria, que evidências não garantem crimes. E mais: que por trás de um comportamento aparentemente criminoso pode esconder-se toda uma ação de benemerência.

- E isso terá alguma utilidade maior, além de agradar a seu ego pelo fato de ter manipulado e humilhado um policial?

- Toda essa história que vivi e que o senhor, sem querer, acabou vivendo, está documentada. Será de grande valia para a análise de criminalistas futuros.

Dito isso, levantou-se, calmamente, e despediu-se. De volta ao meu escritório, repassando essa trama maluca, sem coragem de concluir se o seu principal protagonista também o era, montei a minha própria tese: a de que, se isso fosse literatura, teríamos o primeiro conto policial sem crime, nem solução.

A carta do morto




 

Há uma semana, encarreguei o advogado de nossa família, pessoa de minha absoluta confiança, de lhe entregar esta carta porque não quero que ninguém saiba da existência dela,além,é claro, de vocês dois. Orientei-o para que o fizesse após minha morte- que ele não esperava fosse ocorrer tão cedo. E , para assegurar que só você conheceria o teor do texto, lacrei o envelope.

A essa altura, você já conhece todos os detalhes . Meu cadáver foi encontrado na ponte do lago do Parque Orquidário, em uma manhã chuvosa, com um ferimento a bala na cabeça, mais especificamente na fronte direita. Os bolsos do paletó e da calça tinham sido revirados; estava sem o relógio e a pulseira de ouro . Meu computador portátil sumiu. No local não foi encontrada nenhuma arma. A conclusão imediata da polícia , com certeza, é de que fui vítima de assalto.

A perícia técnica informou que morri no início da noite; ou final da tarde do dia anterior, dá no mesmo. O corpo foi encontrado de manhã, possívelmente por um vigia do parque.

Entendo que, neste momento, esteja surpresa com tais revelações. Pela caligrafia e assinatura, não tem dúvida de que a carta foi escrita por mim. Mas, como eu saberia, de antemão, tantos detalhes sobre meu próprio assassinato?

Por uma razão muito simples: não houve assassinato. Eu me matei.E você é a única pessoa que não poderia ficar sem saber isso, por duas razões. A primeira, é o fato de ter sido minha leal companheira por 30 anos, a única mulher a quem amei e a quem me devotei neste tempo todo. O segundo motivo: não posso correr o risco de outra pessoa vir a ser responsabilizada e punida por minha morte. E , sabendo o que realmente aconteceu, você poderá evitá-lo, se isso for necessário. Jamais deverá deixar que um inocente pague por meu ato extremado. Esse deverá ser o único motivo pelo qual deve ser revelado que me suicidei.

Entre os muitos fatores para seu estranhamento diante deste texto, está a repetição da expressões como " minha morte", " meu cadáver", " meu assassinato" . Compreendo. Você, mais do que ninguém, conhece minha repulsa e atração simultâneas por este nosso inevitável destino. Sabe o quanto o estudei,à luz das religiões, da filosofia, da ciência. E sabe, mais do que ninguém, que, acima mesmo da própria morte, apavorava-me a dor e o aniquilamento . Por que ,além de supremo mal, a morte tem, ainda, de ser antecedida pela dor e precedida pelo esquecimento?

O homem tem tido relativo sucesso na luta contra o olvido pós- morte, construindo mausoléus, perpetuando túmulos. Que o digam os faraós egípcios, com seus corpos imperecíveis e pirâmides gigantescas, o quanto essa tentativa pode ser bem sucedida. Entretanto, o que nos pode garantir que evitaremos o sofrimento pré-morte? As dores lancinantes, as agonias inenarráveis que antecedem o último suspiro?

Minha reação ao esquecimento você conhece, pois acompanhou, por anos, os esforços para a construção daquele mausoléu da família no cemitério da congregação.Um verdadeiro monumento, que será admirado por gerações e gerações e no qual investi uma parte considerável de nossa fortuna.

Restavam-me as providências para evitar o sofrimento. Confesso que, antes, minha concentração em tal objetivo não era muito frequente.Nem tanto por achar ser meta implausível.Talvez em razão do bloqueio mental, comum a todo ser humano, que o impede de pensar nos sofrimentos que antecederão à morte- ou na morte, propriamente.

Há uns dois meses, entretanto, precisei ser mais objetivo quanto a isso. Os resultados de meus exames médicos anuais revelaram que sou portador de rara moléstia que provoca a paralisia gradativa do corpo. Sofre-se por semanas e meses sentindo-se cada uma de suas funções motoras e vitais fenecerem, até a paralisação total. Nada detém o processo. Nada suaviza o sofrimento proporcionado por tão lenta agonia.

Ainda com os resultados dos exames em mãos, tomei a decisão: matar-me-ia antes dos primeiros sintomas do mal. E seria da maneira mais simples, rápida e indolor que se conhece: um tiro na cabeça. Não poderia arriscar-me a coisas como auto-envenenamento, com suas dores e suas possibilidades de erro e as consequentes sequelas torturantes .

Planejei tudo cuidadosamente. E nisso fui ajudado por aquelas leituras de romances e contos policiais- lembra?- hábito que você sempre achou curioso, levando-se em conta minha propensão intelectual à filosofia e ao esoterismo.

Primeiro, escolhi o local. Não precisei procurar muito para descobrir que o Parque Orquidário preenchia todas as condições. É uma área pública, de livre acesso, durante todo o dia. Fora da temporada de verão, não é muito visitado e fica praticamente deserto nos finais de tarde. Depois, o parque possui uma ponte sobre o trecho mais estreito de uma pequena lagoa, tranquila. A ponte fica quase escondida por arbustos e plantas ornamentais. As razões da importância desses detalhes para meu plano você entenderá mais adiante.

Escolhido o local, era preciso determinar o dia. Não com base em datas, mas quanto às condições de tempo. Teria de ser em um desses períodos chuvosos da meia estação.

Comprei o revólver, clandestino, com número de série raspada, em uma dessas chamadas feiras do rolo, tão comuns em nossa região, onde se vende de tudo e não se pergunta nada. Escrevi esta carta, tirei uma cópia xerográfica, coloquei o original em um envelope, lacrei-o e entreguei a nosso advogado, com as orientações quanto à entrega.

Quando surgiu o dia propício, de chuva intermitente, com possibilidade de continuação por pelo menos mais 24 horas, dirigi-me ao parque. No caminho, desfiz-me do relógio, da pulseira de ouro e do computador portátil ( jamais serão encontrados sob o mar, nos costões da península, onde os joguei). Às 17,30 horas,não tinha quase ninguém no parque. A área do lago estava vazia.

Você deve estar se perguntando: como eu poderia saber de todos os fatos ocorridos , entre a saída do escritório e o suicídio, se eles ocorreram depois que elaborei a carta? Ora, se a está lendo, é porque, a essa altura, todos os aspectos do plano deram certo.

No local, revirei os bolsos do paletó e da calça, apontei para a têmpora direita e disparei.Outras duas providências fundamentais para que nem se cogitasse a tese de suicidio já havia adotado anteriormente. A primeira delas foi a escolha de um dia e noite chuvosas. Antes de sair do escritório, passei sabão em pasta em toda a mão direita e até a altura do pulso, local que não seria coberto pelo punho da camisa de mangas compridas. Assim, os residuos de pólvora que costumam ficar na mão de quem utiliza arma de fogo ficariam presos à crosta de sabão, que posteriormente seria diluida pela água da chuva, eliminando, assim, qualquer vestígio de que eu mesmo possa ter disparado a arma.

O desafio maior, porém, estava em como dar sumiço ao revólver. Alguém tem condições de se matar e depois esconder a arma com que o fez ? Mais uma vez- e de maneira fundamental- minhas leituras de histórias policiais deram-me a solução. Lembra-se do conto O caso da ponte, protagonizado pelo grande Sherlock Holmes? Fiz o mesmo que a mulher da história: peguei uma corda, de cerca de um metro e meio, e, em uma das extremidades, amarrei, com seguros nós, o revólver. Na outra , com os mesmos cuidados, atei uma barra de ferro, de dois quilos. Deixei a barra suspensa sobre o lago, na mureta lateral da ponte; apontei a arma para a cabeça e atirei. Naturalmente, depois disso, larguei o revólver que, arrastado pelo peso do ferro, caiu no lago e afundou com ele.

Tomei dois cuidados adicionais: presa à barra de ferro, por arame inoxidável, e envolta em plástico, deixei a cópia desta carta. A corda que serviu para amarrar a arma e o ferro é de nylon. É preciso que, nem a corda, nem o invólucro da carta, apodreçam no fundo do lago. Devem ser encontrados intatos, no caso de você precisar de mais provas, além do original dessa carta, de que me suicidei. Conto sempre com a possibilidade de que, impotente para solucionar um caso de grande repercussão, a polícia, para dar satisfação à opinião pública, faça de bode expiatório alguns desses infelizes que costuma prender todos os dias. É prática mais comum do que se imagina e eu jamais poderia aceitar que isso ocorresse.

Por fim, minha querida, chegou a hora de responder à maior das perguntas que, sem dúvida, você deve estar se fazendo: por que engendrei trama tão complicada para fazer meu suicídio parecer um assassinato?

Lembra do mausoléu, que construi para última morada, com o qual , a exemplo dos faraós, decidi precaver-me do esquecimento póstumo, e que me custou tanto esforço e dinheiro? Lembra que é proibido o sepultamento de suicidas no cemitério da congregação?

A arma do crime


- Ele era um homem grande, 1,80 metro de altura, pesava quase 100 quilos. Mas o tiro jogou-o a dois metros de distância, após despedaçar-lhe metade do crânio. Uma coisa horrível.

Quando foi fazer pesquisa naquela clínica, o jornalista estava apenas querendo obter informações para uma reportagem especial sobre o mal de Alzheimer, doença degenerativa do cérebro, que faz a pessoa, aos poucos, ir perdendo a memória e que tem uma característica diferente das moléstias semelhantes: o paciente esquece fatos recentes, mas lembra-se perfeitamente dos antigos.Na fase aguda, não consegue,por exemplo, lembrar-se de que almoçou, mas recorda-se de uma ceia de Natal da infância.

O jornalista e a diretora da clínica já haviam conversado sobre isso tudo.Escolhera aquela clínica por abrigar milionários ou personalidades das artes, política, negócios, etc, vítimas do mal. Isso daria um tempero especial à matéria, que revelaria os efeitos da doença no comportamento de quem, antes, comandara ou seduzira as massas.Firmara o compromisso de não revelar nomes, apenas casos.

A garantia do anonimato foi o que fez a diretora alongar-se sobre a ficha de determinados pacientes: a ex-atriz que, agora, zanzava pelo jardim repetindo dois ou três versos de Shakespeare:o antigo locutor de eventos esportivos que não falava mais; o ex-governador de Estado hoje apenas fazendo o que lhe ordenam ( comer, beber, andar), etc.

Alongava-se, naquele momento, a franzina médica no caso que parecia mais fasciná-la e que, como o jornalista saberia depois, fascinava a quem dele tivesse conhecimento: o do empresário que matara o único filho pensando tratar-se de um urso.

- É a prova de que nem todos os pacientes de Alzheimer podem ser mantidos em casa. A partir de certo estágio, suas atitudes tornam-se imprevisíveis; a única realidade presente é a do passado.Agem como se vivessem décadas atrás. Para evitar maiores danos, para eles e para quem com eles convive, o melhor a fazer é interná-los. Infelizmente, neste caso, a decisão só ocorreu após a tragédia.

E a diretora descreveu o assassinato , que não chegou a conhecimento público em razão da notoriedade de seu autor, um homem que não só detivera notável força econômica , mas, também, a inevitável influência política decorrente dela. Segundo os jornais da época, fora acometido de um irreversível dano neurológico apos tomar conhecimento da morte do filho em um assalto. Mas a médica sabia muito bem de toda a história, pois fora quem providenciara, às altas horas de determinada noite, a internação do assassino, aconselhada pelo advogado da família e autorizada por sua nora, logo após o encontro do corpo da vítima, com a cabeça estraçalhada por uma bala de grosso calibre, e do assassino, ainda com a arma quente nas mãos.O crime ocorrera na fazenda onde o empresário morava, com o filho e a nora, desde que o Alzhemier fora diagnosticado. Foi surpreendido na varanda da casa-sede, por um empregado, acordado pelo estampido. Balbuciava, de olhos fixos no portão coberto de folhagens: " Perfeito! Perfeito".

Até os policiais,que atenderam a ocorrência, acostumados a cenas de assassinatos, ficaram impressionados com o estrago causado pela arma do crime. Pudera. Tratava-se de um fuzil tcheco CZ 550, usado para matar elefantes, com capacidade para atingir alvos a um quilômetro de distância. A potência do impacto seria exagerada até para um urso , imagine,então, para um homem, que estava a pouco mais de 50 metros.

Os testes de balística, residuográficos, depoimento do empregado e demais circunstâncias não deixavam dúvidas de que o autor do disparo havia sido, mesmo, o empresário.

O assassinato havia ocorrido há mais de 10 anos, mas a médica relatava-o como se fossem 10 dias.Sua ênfase narrativa despertou no jornalista a curiosidade do reporter policial do início da carreira.

- É possível conversar com o paciente?

Era, sim- respondeu a diretora-clínica. Desde , é claro, que não fosse uma entrevista. Nada de gravador, nem anotações, portanto.

O homem que estava ali, ao lado do jornalista aparentava pouco os 65 anos de idade. Os cabelos grisalhos e ralos, as rugas,mais acentuadas na testa, dando-lhe uma permanente expressão de perplexidade, tornavam-se insignificantes, como sinais de velhice, ante os fortes músculos dos braços e pernas, o tórax proeminente, que nem a barriga, já um tanto rotunda, conseguia camuflar.Tudo isso espalhado por algo que o jornalista calculou entre 100 quilos e 1,90 metro de altura.

O enfermeiro que os apresentara mantinha-se alguns metros afastado, atitude mais ditada pela discreção do que por cautela. A diretora clínica explicara que o paciente era tranquilo, calado a maior parte do tempo.Quando disposto a conversar, detinha-se quase sempre em um assunto único: caçadas. Seu lugar preferido na clínica era aquele banco sob uma mangueira e perto do lago em cujas margens perfilavam-se os chalés dos internos.

- A moça ainda não apareceu?- perguntou, sem olhar para o jornalista, quebrando o silêncio que se seguiu à apresentação.

O jornalista já esperava a pergunta, alertado pela diretora clínica de que o paciente a fazia com frequência, sem esperar resposta. Havia uma opinião generalizada de que se referia à nora, com quem vivera por muitos anos até o dia da tragédia.Compreensivelmente, a mulher nunca mais aparecera desde o dia da internação. Sabia-se que vivia modestamente com parentes, em uma cidade do sul.Casada em regime de separação total de bens, a mulher nada herdara com a trágica morte do marido.A manutenção do fazendeiro na sofisticada clínica era feita por um fundo financeiro que administrava suas empresas desde o diagnóstico do mal de Alzheimer.

- Então quer dizer que o senhor é jornalista? Gosto de falar com jornalistas. Vocês também são caçadores, à sua maneira.A única diferença é que vocês se contentam em descobrir a caça, nós, não: descobrimos e a abatemos.

- Gostaria que me contasse alguma de suas histórias de caça- perguntou o jornalista, ciente de que estava sendo movido pela morbidez de fazê-lo narrar a história do urso. Mas o paciente não parecia disposto a isso. Discorreu sobre uma série de façanhas: abates de jacarés e aves no Pantanal; de antílopes e felinos em savanas africanas, sempre como se tivesse referindo-se a fatos contemporâneos.Era o Alzheimer em seu alto grau- pensou o jornalista. Não se recorda do café da manhã, mas detalha caçadas de décadas atrás.As narrações eram enriquecidas com informações técnicas sobre cada tipo de caça, de armadilha, de tocaia, de armas. O jornalista resolveu forçar-lhe a memória.

- O senhor já caçou ursos?

- Apenas um.

Surpreendido pela rápida resposta e com receio de que alguma pausa no diálogo, por menor que fosse, levasse novamente à obscuridade aquela lembrança , lançou a segunda pergunta:

- Como foi essa caçada?

- Não foi uma caçada. Foi uma necessidade.Ele era uma ameaça. Aparecia toda madrugada na fazenda. Ousado. Vinha até o portão da sede.Era grande. Se atacasse um de nós, não teríamos a menor chance.

-Mas existem ursos no Brasil?

- Claro que não. Isso não é animal de região quente. É de regiões frias. Esse que matei deve ter escapado de algum zoológico, ou circo. Não sei que diabos viu na minha fazenda para ficar zanzando por aqui.Mas ele não contava com minha boa mira, nem meu poderoso rifle. Nós estávamos prontinhos para ele. Foi um tiro só. Perfeito.

Insensata? Inoportuna? Desumana? Mórbida? Oportunista? O jornalista não se preocupou em definir a pergunta, quando a fez, à queima roupa:

- O senhor tem filhos?

- Tenho. Apenas um. Já é um homem, casado. Um bom sujeito, com o terrível defeito de não gostar de caçar. Pelo menos de caçar animais, se é que você me entende.

O empresário, que o tempo todo falava sem fitar o interlocutor, mantendo o olhar em um ponto indefinido no lago, agora encarava o jornalista, com ar matreiro.

- Não pode ver um rabo de saia.Não sei a quem puxou.Deus sabe que

não foi a mim. Enquanto sua mãe viveu, fui homem de uma mulher só.E até hoje tenho dificuldade para fazer novos relacionamentos. Acho que por causa da memória da companheira. Mas ele, não. A esposa fica aí e ele sai à caça. Nem se dá ao trabalho de disfarçar. Também, esta moça não reclama, parece que nunca desconfia de nada. Se eu aprontasse com a patroa metade do que meu filho apronta com a mulher dele, acho que a velha me quebrava a cabeça.Às vezes até que dou razão ao rapaz.Pude ser fiel a vida inteira porque tinha outro amor: as caçadas. Meu filho não tem. E todo homem precisa de vários amores. Ele os busca em outras mulheres.Não me importo com isso. Só me importava até umas semanas atrás.

O paciente calou-se, reforçando o suspense que a própria frase sugeria.

- Por que? Interpelou o jornalista.

- Por causa do urso, ora! Chegando toda madrugada, bêbado, ele ia ser uma presa fácil do bicho! Mas eu resolvi o problema. Um tiro só. Perfeito.

O enfermeiro aproximou-se e o jornalista entendeu que a conversa deveria ser encerrada. Ao vê-lo , o paciente indagou:

- A moça ainda não apareceu?

O enfermeiro sabia que não precisava responder. Qualquer reposta seria esquecida pelo paciente meia hora depois e ele certamente a repetiria a questão ao primeiro interlocutor que aparecesse. Pegou-o suavemente pelo braço direito e ambos caminharam em direção ao prédio principal da clínica.

.

- E então? O que achou?

O tom de voz da diretora-clínica , assim que o jornalista entrou de novo em seu escritório, trazia aquela ansiedade de quem quer saber se o presenteado gostou do que acabara de desembrulhar.

- É, realmente, uma história fascinante. Difícil ficar indiferente ouvindo um pai contar como matou o próprio filho, achando que, ao fazer isso, salvou-lhe a vida.

- Como eu previa, este caso atingiu forte sua sensibilidade. Imagine, então como afetou a nós, que o testemunhamos desde o início.

- Não tenho dúvidas de que deve ter sido uma experiência marcante.

Vou mostrar-lhe, agora, uma coisa que o fará emocionar-se mais ainda.

Minutos depois, o jornalista tinha, em mãos, a arma utilizada, guardada por uma década no armário maior do setor de arquivos da clínica.O fuzil sueco CZ 550, capaz de atingir um elefante a um quilômetro e matá-lo, era leve. Uns três quilos, se tanto.

- É uma arma feita para caçar elefantes, animais dos trópicos. Não pode ser muito pesada, pois seria difícil levá-la através da selva quente ou de desertos. Dispara quatro tiros, antes de precisar ser recarregada.

Diante do ar de espanto do jornalista, face àquela demonstração de conhecimentos bélicos, a diretora concluiu:

- Isso tudo me foi explicado pelos policiais, naquele dia fatídico.

Ao sair da clínica, o jornalista sabia que jamais esqueceria tal história . E, como a ratificar tal certeza, colocar um selo imperecível naquelas lembranças, lá estava, dirigindo-se lentamente ao seu chalé, de braços dados com uma enfermeira, a principal personagem da tragédia. Não resistiu ao desejo de despedir-se, movido por um impulso emocional, talvez de pena, ou agradecimento pela atenção que lhe fora dada ( quem sabe as duas coisas juntas). Aproximou-se e, antes de falar , o paciente se antecipou:

- A moça, ainda não apareceu?

Vou responder- pensou o jornalista. Não posso recusar-lhe essa atenção mínima.

- Não. Ainda não apareceu, mas logo vai estar por aqui.

E então, o homem, que havia matado o filho imaginando ser ele um urso, recolheu o olhar vago da superfície do lago; mirou no jornalista e exultou:

- Perfeito! Preciso dizer a ela que não precisa mais ficar com medo. Não há mais perigo. Já matei o urso que ela descobriu. Só precisei ficar umas quatro noites de tocaia no local que ela me indicou. É isso que eu preciso dizer-lhe.

O jornalista teve, então, a certeza de que a arma do crime, realmente, era excepcional. Tinha acabado de falar com ele.