quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O barril de gasolina

Ele seduziu minha noiva, com seu jeito de sabidão, homem de letras. Não precisou fazer muito esforço pois, desde que ela entrara na faculdade de jornalismo, achava-se mais inteligente de que todo mundo. Eu, dono de uma pequena oficina mecânica, já não lhe servia mais.Trocou-me pelo homem dos livros.

Natural que tivesse raiva dele. Mágoa que até poderia ter passado, com o tempo, mas ele não deixava. Não dizia claramente, mas parecia sempre fazer questão de me lembrar quem era. Só consertava o carro na minha oficina. Às vezes aparecia apenas para puxar conversa. Chegou a me pagar cervejas na lanchonete da esquina.

Eu não conseguia evitar essa convivência. Não queria passar por um ressentido. Mas aquilo não me agradava; considerava humilhante.

Naquela noite garoenta, às 10 horas, estava no centro da cidade, quando o vi saindo de um bar. Cambaleava . Viu-me e a voz pastosa com que me chamou, deu-me a certeza de que tinha exagerado na cerveja. “ Preciso de um favor seu. Estou quase sem combustível no carro. Não vai dar para chegar no posto da estrada. Você não tem jeito de me arranjar pelo menos uns dois litros por aí?”

Respondi que na oficina tinha um barril de gasolina, onde a gente deixava, de molho, algumas peças,para amolecer a ferrugem. Podiamos ir até lá. Concordou imediatamente e, em poucos minutos, estávamos a caminho. Percurso relativamente pequeno. Bastava pegar a estrada do costão e descer até o bairro de baixo, onde ficava a oficina. Três quilômetros, se tanto.

Percorrido o primeiro quilometro, ele parou, bruscamente.” Barril de gasolina? Barril de gasolina? Você pensa que eu sou bobo? Pensa que não sei da  raiva que você tem de mim? Também li Edgar Allan Poe. Aliás, li mais livros em uma semana do que você em, toda sua vida.Conheço muito bem toda a obra de Poe,  principalmente  a história "O barril de amontilado", onde o assassino esconde o corpo da vítima em um barril de vinho. E não será você, um mecânico ignorante, que  me pegará nesta cilada do barril de gasolina. Pode descer do carro!”

Repetia e embrulhava  as frases, em tom acelerado, e apontava-me a porta raivosamente. Saí. Percebi, então que, apesar de termos parado no acostamento à beira do trecho mais alto do costão ( a escuridão da noite não permitia ver nada, mas era possível ouvir as ondas batendo nas rochas, 30 metros abaixo), ele não puxara o freio de mão. Compreensível: ali a estrada  era plana.Contornei o carro, pela frente. Aproximei-me de sua janela, bati no vidro, fazendo gestos de que queria dizer-lhe algo. Ele abriu. Rápido, com o braço direito, alcancei o volante, girando-o todo para a direita. Ao mesmo tempo, com o ombro apoiado na coluna da porta,empurrei o carro, como se faz na oficina, quando a gente quer movimentar um veículo sem entrar nele. O carro deslizou facilmente em direção à encosta , adernou e, logo , estrondava de encontro às rochas no fundo do despenhadeiro, antes de afundar nas furiosas águas do costão.

Minutos depois, de volta para casa, andando pela estrada,, o corpo molhado pela chuva e a alma lavada pela vingança, eu refletia sobre as coisas que a gente faz. Acreditem-me:nunca me passou pela cabeça matar o sujeito. A idéia só surgiu ao perceber o local em que ele havia parado o carro naquela noite.

A propósito: o que é amontilado? Quem é Edgar Allan Poe?

O monstro

Depois do resto do corpo, o cérebro cansa. Adormece lentamente, sem controlar as invisíveis cordas do raciocínio. É preciso reagir ao monstro paralisante, apesar do cinza ( o sol é apenas uma lembrança) e do frio ( o calor, um sonho).

A umidade desvirgina roupas e peles e as mensagens neurológicas do gelo chegam ao cérebro transformadas imediatamente em tremor.Agir contra o monstro paralisante, o lema;erguer essa bandeira, o sacrifício.

De que valerá levantar-se, pegar aquele livro que exigirá o manuseio, a leitura, a reflexão? E para quê, afinal, deixaram registradas em palavras as impressões que o tempo apagará, senão da memória dos homens, talvez no rastro radioativo que o último ódio produzirá?

O monstro-depressão mata qualquer esperança de respostas. Mas gera, sem querer, a necessidade delas. De fraca, porém, energia, que a condena a ser eterna necessidade.

Os olhos são-me de chumbo. À luta,contrapõe-se inércia. Objetivo: o sono.O acelerar de um carro lá fora fala de movimentos, sem dizer para onde.Vozes e passos na sala ao lado dizem de atividades.Quais?

Aqui, a batalha está perdida e o gesto de capitulação não poderia ser mais terrível: apertar o gatilho.

Certos escritores



- Eu não sou investigador!

- Mas vai ter que ir. Não é todo dia que uma mulher é encontrada morta em um estande da Bienal do Livro. Por isso, esse crime vai dar um barulho dos diabos na imprensa.

- Meu trabalho vai ser uma porcaria. Escrivão não investiga, escrivão escreve.

- Não interessa. O importante é que a polícia esteja presente.O pessoal da perícia já foi lá.

O diálogo marcou o início do dia em que escrivão Lúcio começou a investigar um crime.A ordem de serviço foi dada pelo delegado Matias, também diretor do sindicato da Polícia Civil, em telefonema do prédio da Justiça do Trabalho, onde fora participar de reunião com o secretario da Segurança Pública e o juiz. Era mais uma rodada de debates sobre a greve dos policiais. O movimento já entrava na segunda semana, sem perspectivas de solução .Para não descumprir a lei de greve, garantindo os chamados serviços essenciais, o sindicato mantinha, em cada distrito, uma equipe mínima .No distrito de Lucio, o único escrivão era ele,mais dois investigadores. Pinto Pelado trabalhou três dias e,no quarto, foi derrubado por uma dengue. O outro, Santão, precisou ir para casa descansar após quase 72 horas ininterruptas em ação.

- Não pode um caso desses ficar sem assistência policial. Se fosse um craqueiro assassinado em uma birosca no morro do Mundaú, tudo bem. Mas uma mulher? Na Bienal do Livro?Vai chover reporter .Se não tiver ninguém começando as investigações, cairão de pau na gente. A greve e a categoria vão ficar com a imagem arranhada perante a opinião pública.

O delegado e companheiro líder Matias não podia ser mais convincente e, dez minutos depois, Lúcio fazia sua estréia como investigador em um cenário de homicídio.Que não poderia ser mais apropriado: o estande pertencia a uma editora que começava a dedicar-se a livros com histórias policiais e aproveitava a bienal para lançar o primeiro volume de uma coleção chamada Viela do Crime.

"Isso não pode ser coincidência", pensou Lúcio, já treinando o tique desconfiado que deveria permear seu comportamento a partir de então. O corpo não estava mais lá. A equipe de peritos, em tempos de greve, também mínima , trabalhava rápido e à meia boca para atender a todos os casos que surgiam. Lucio teve de contentar-se em examinar o desenho, a giz, de um cadáver no chão.Como não há muito o que se concluir de uma coisa dessas, ligou para o perito Menezes que, após ser devidamente esclarecido sobre que diabos um escrivão estava fazendo na cena do crime, deu as primeiras informações: tratava-se de uma mulher, com idade entre 40 e 45 anos, morta há pelo menos uma hora- portanto às nove horas - e, ao que tudo indica, por um golpe certeiro no coração, causado por instrumento perfurante, de ponta nem fina, nem larga, conforme dava a entender a mancha de sangue na blusa, à altura do seio esquerdo.O corpo estava caído ao lado da pilha de livros no centro do estande. Mais não podia ser dito, senão após um exame melhor no Instituto Médico Legal. A ordem do delegado Matias foi para que removessem o cadáver o mais rápido possível . Antes da chegada de jornalistas. Os peritos sequer mexeram nas roupas da vítima e a operação retirada foi bem sucedida.

Desligado o celular, Lúcio voltou-se, então, para o cenário que se lhe apresentava. O estande possuia dois ambientes: na frente, o espaço livre, aberto ao público, tendo ao centro um estrado cheio de livros e, a um canto, uma cadeira. O outro ambiente era uma saleta, com porta que podia ser trancada a chave. O conjunto ficava na extremidade de um corredor entre duas fileiras de estandes.Ou seja: só tinha um acesso.Um beco sem saída. "O beco de crime.", refletiu Lucio, achando que este seria um título bem melhor para a coletânea de histórias policiais da editora.

Não era nem um pouco fã daquele tipo de literatura. Primeiro porque, a seu ver, os escritores não entendem nada de crimes, nem de soluções. Inventam aquelas bobagens sem a menor noção do que acontece na vida real. A maioria só viu defuntos em velório e olhe lá. Além do mais, têm a mania de apresentar a polícia como um bando de idiotas, truculentos ou incompetentes. "Fazem isso porque, na verdade, são policiais frustrados", concluía psicanaliticamente para quem estivesse interessado em ouvi-lo sobre o assunto. " Os verdadeiros autores de histórias policiais somos nós, os escrivães de polícia. Descrevemos a realidade, muitas vezes quando o crime mal acabou de acontecer" pontificava.

Acontece que, agora, ele não era escrivão. Era investigador.Precisava ouvir alguém e a perspectiva de ter de falar com escritores- pois, ao que lhe informaram, eram as pessoas mais próximas dos fatos ( além da representante da editora, que achara o corpo)- não lhe era muito agradável. Mas tinha que enfrentar os babacas.

Ele já sabia quem era a vítima e não precisou esforçar-se muito para isso pois a representante da editora, uma loura magrinha, nervosa , entre um soluço e outro, lhe informara. A morta era uma professora, que atuava como monitora de um estande da Secretaria Municipal da Educação.

- Cheguei a conversar com ela umas duas vezes. Disse que era fã de histórias de mistério e pretendia comprar o livro Viela do Crime. Fazia questão de obter os autógrafos dos autores- disse a loirinha.

Eram 10 autores, mas, ao lançamento do livro,marcado para as 10 horas daquele dia, só compareceram cinco. Estes combinaram chegar mais cedo, antes da entrada do público no pavilhão Todos na sala, com a representante da editora,alguém sugeriu que se tomasse um café, após o que tratariam dos detalhes da manhã de autógrafos. A representante, então, resolveu buscá-lo na lanchonete do pavilhão.

- No corredor, encontrei com a professora, que estava indo abrir o estande dela. Sugeri que, se ela quisesse pegar os autógrafos , sem atropelos, deveria aproveitar que os escritores estavam em nosso estande . Podia retirar um livro no estrado e me pagar depois. Ela achou a idéia boa e dirigiu-se para nosso espaço . Eu segui até a cantina. Foi tudo muito rápido. Quando voltei, cinco minutos depois, encontrei-a caída, perto do estrado . Fiquei nervosa, gritei pelos escritores, depois chamei um segurança, que ligou para o posto médico. Uma enfermeira veio e disse que a mulher estava morta. Como viu a mancha de sangue na blusa, achou melhor não tocar no corpo e que se chamasse a polícia.

A Polícia Militar chegou primeiro,isolou o lugar; os peritos vieram , fizeram o desenho a giz e sairam com o cadáver . Depois , como já se viu, apareceu o escrivão Mateus travestido de investigador. A próxima etapa de seu trabalho seria falar com os escritores

A necessidade de não perder tempo, aliada à falta de prática para começar uma investigação fez com que Lúcio decidisse interrogá-los coletivamente , dentro da salinha, de porta fechada, para ninguém atrapalhar. Ele na cabeceira e, em volta da mesa de reuniões, duas mulheres - uma grandona, com sotaque gaúcho e uma pequena, japonesa ou nissei- e três homens, um cabeludo, um careca e um quase gordo. Este, com cara de senador, pensou Lúcio, sem saber por que chegara a tal conclusão. .

Terminado o interrogatório, determinou que os cinco permanecessem na sala e foi para a área externa, transmitir, via celular, para o delegado Mateus, o primeiro relatório sobre o caso.Não conseguiu conter a irritação quando falou do interrogatório.



- Olha, doutor, se eu já não gostava de escritores de conto de carochinha policial, agora gosto menos ainda. Aquilo não foi um interrogatório, foi uma mesa- redonda.Eu fazia uma pergunta, eles vinham com uma análise.As duas mulheres eram as piores.

- Você demonstrou, dissimuladamente, é claro, que desconfiava de um deles como autor do crime?

- Não tive nem tempo. Antes que eu abrisse a boca, já foram dizendo que nenhum deles tinha saído da sala. A gaúcha disse que a moça da editora deveria ser descartada porque, quando eles sairam da sala, atendendo a seus gritos, ela ainda estava com a garrafa térmica e um pacote de copos de papel nas mãos e não havia nada que se assemelhasse a uma faca ou estilete por perto.A japonesa arrematou explicando que seria muito difícil,por falta de tempo e pela proximidade da sala, a loirinha desvencilhar-se da garrafa e dos copos, apunhalar, ou algo parecido, a vítima , esconder o punhal- ou coisa que o valha- pegar de novo os pacotes e só então chamar a atenção deles .

- Mas você não colocou a possibilidade de a vítima ter sido agredida em outro local , vindo a cair dentro do estande?

- Quando comecei a tocar no assunto, a japonesa disse que era improvável porque a representante da editora cruzou com a vítima a poucos metros do estande . Se o crime ocorreu logo após isso, ela ainda estava à vista, pois o corredor é comprido, e teria ouvido algum barulho ou notado a movimentação. Além disso, o atacante teria de ficar escondido e agir após a passagem dela rumo à cantina e não havia local onde alguém se enfiar naquele trecho do corredor.

- E se o agressor tivesse entrado pelo outro lado?

- Bem, doutor, nesse caso a conclusão é minha: não daria porque o estande é o último de um beco.Só tem uma entrada e uma saída.

- Puta que o pariu! Será, então, que a mulher se suicidou?

- Quando falei isso, tentando ser sarcástico, o sujeito com cara de senador , sem notar a ironia, foi logo dizendo, todo sério, que nunca ouviu falar de alguém dar uma facada mortal no próprio coração e depois esconder a arma. " Não havia nada que se parecesse com um punhal ou objeto cortante perto do corpo", completou o careca. Ou seja, os contadores de história da carochinha, do alto de sua sapiência literária, só faltaram me dizer que não houve ocorrência nenhuma e que tudo não passou de uma miragem.

- Bem. Vamos manter a calma. Segura os escritores e a mulher da editora no estande. Não os deixe nem ir ao banheiro enquanto não lhe chegarem as informações do Instituto Médico Legal sobre as causas da morte.Liga lá e aperta os caras.

-Falou.

Exatos 32 minutos depois, o escrivão/investigador Lúcio, com a voz meio desenxabida, ligou novamente para o delegado Matias.

-Tudor resolvido, doutor.A perícia acabou de me ligar.

-Resolvido o quê? A dúvida sobre a causa mortis?

- Não, doutor. Resolvido o caso todo.

- Puxa, que beleza! Mas você não parece muito contente com isso.Ânimo, rapaz! Acaba de solucionar seu primeiro crime!

- Mas não houve crime, doutor.

- Como assim?

- A mulher morreu de infarto.

- Não diga! E a mancha de sangue no lado esquerdo do peito e tudo o mais?

- Ela usava um daqueles suportes para quem tem problemas de coluna. Estes coletes têm várias hastes de metal por baixo do tecido. Quando caiu, uma delas soltou e provocou o ferimento de onde saiu o sangue.Mas não foi ele que causou a morte. Era muito superficial.

- Que coisa, não?

- Agora, doutor, gostaria que o senhor me fizesse um favor.

- Pode pedir.

- O senhor podia dispensar os escritores por telefone? Não estou muito a fim de falar com esses caras.

Uma casa só vê e ouve

Uma casa não tem controle sobre seu destino, nem sobre o destino de ninguém.É planejada, construída, reformada, reduzida,ampliada, destruída, à sua revelia.Uma casa não controla sequer sua degradação, que fica por conta dos insetos, das chuvas, dos ventos, do passar implacável dos anos.

Uma casa não determina o destino dos que nela residem ou simplesmente pernoitam. Mas ela os vê e os ouve.

Eu, por exemplo, olho e escuto o que fazem meus donos. Quando eles estão aqui,é claro, pois sou uma casa de praia e, como o tempo quente, no litoral norte paulista, dura menos de dois meses, é este o período médio anual em que os ouço e vejo. Não sou mansão luxuosa, mas admito ser bem confortável para uma casa de praia. Com dois andares, faço frente para a avenida da orla e fundos para o mar. O acesso à praia é pela porta na base da escada que liga a área de serviço ao segundo pavimento ( a outra escada é a que une a sala frontal, na parte inferior, aos dormitórios, em cima).

Não tenho caseiros. Meu dono não vê necessidade disso, pois mora na capital, a apenas 50 quilômetros daqui.De vez em quando, principalmente em fins de semana,ele aparece , faz uma vistoria geral e, se constata algum problema, um vazamento,uma sujeira,chama alguém da vila para solucionar. Às vezes faz isso nas férias de verão.No inverno, ele, a mulher e a filha, de pouco mais de 20 anos, costumam usar a casa para pernoitar , seguindo no outro dia bem cedo a Paraty, no Rio de Janeiro,onde, durante esta estação, ficam por alguns dias.

Foi numa destas baldeações que ocorreu aquilo.

Certo final de tarde. meu dono apareceu, sozinho, como de outras vezes. A novidade foi que arrombou a fechadura da porta dos fundos , deixou-a encostada e foi embora. Não retornou.

No outro dia, também ao entardecer,chegaram apenas mãe e a filha. Assemelham-se a irmãs,tal a elegância e agilidade ainda conservadas na mulher mais velha.Iriam a Paraty na manhã seguinte,sozinhas, pois o homem ficara na Capital , tratando de alguns negócios, e as encontraria depois,na cidade fluminense. Isso também ocorrera em outras ocasiões.E, tal qual nas vezes passadas, a mãe acomodou-se no quarto do casal e a filha no segundo quarto de hóspedes,no outro extremo do corredor.

Repito-lhes o que ouvi naquela noite, por volta das 23 horas:

" Doutor, estou falando no telefone do quarto, como o combinado. Para o senhor ter a certeza de que estou mesmo aqui.Pode ver o número aí no identificador de chamadas. Que gritaria é esta ? Ah! O senhor está na pizzaria, com alguns amigos. Entendi. É o álibi. Pois bem: o serviço está feito.Pode se considerar livre da jararaca.Mas não foi bem como o senhor disse. Quando entrei no quarto, estava tudo apagado, só tinha aceso um abajur fraco e sua mulher não estava no quarto,dormindo. Se estivesse, a coisa seria mais rápido e mais fácil, era só um sufoco na cama. Tive de esperar atrás da porta para, quando ela entrar, atacar antes que acendesse a luz. O jeito foi lhe quebrar o pescoço.Nada fácil porque a mulher era bem forte para a idade. Mas fica tranquilo que não houve grito,nem barulho. Sou bom nisso e não teve erro. Agora, o seguinte: em que lugar do quarto estão os cinco mil da segunda parte do pagamento do serviço? ... Na segunda gaveta da onde?... Da cômoda? Embaixo da caixa de jóias? Falou... Já vi... . Vou levar as jóias também . E o relógio em cima do criado mudo.Assim fica mais claro que houve assalto... Já sei... Não precisa repetir que preciso sair por onde entrei e deixar a porta aberta. Afinal, quem é que arromba uma porta, assalta uma casa, e, ao sair , tem o cuidado de fechar a porta ? .. Ok! Não vou mais ligar para este número.Sei que não vai adiantar porque é celular pirata e o senhor vai jogá-lo fora na primeira oportunidade. Tchau e até outra vez."



Uma casa, já disse,ouve,mas também vê.E o que vi,naquela noite, momentos antes de escutar o telefonema, foi o seguinte: a mãe levantou-se e dirigiu-se ao quarto onde estava a filha. " Não consigo dormir por causa de uma dor de cabeça horrorosa. Você não podia dar-me um desses seus comprimidos contra enxaqueca"?, disse. " Não quer que eu lhe faça também uma massagem no pescoço e nos ombros?", respondeu a jovem. " É uma boa idéia. Vá ao meu quarto e pega aquele creme que eu uso para massagear o rosto".

A moça foi.

Sou apenas uma casa. Vejo e ouço, mas não determino o destino de ninguém.

O sr.Gorfpoh

Para Edgar Allan Poe


Eu sou o Sr. Gorfpoh, assistente da diretoria da empresa. Estou saindo do prédio , acompanhado de minha namorada, secretária da presidência, , e não pretendemos mais voltar. Isso é bom porque não seremos mais humilhados pelo sr. diretor-presidente. Afinal, são 20 anos de serviço, sem nenhuma consideração. O que sempre fui? O faz tudo no gabinete da diretoria. O que ela sempre foi? A faz tudo na secretaria. Promoções? Não. Aumento de salário? Não. Mais trabalho? Sim. E humilhações.
"Sr. Gorfproh, o sr. parece ter talento para organizar eventos", disse-me ele um dia, inspirado,quem sabe, por algum desafeto meu . E- como se já não tivesse tanto para fazer- passei a ser responsável também por festinhas . Confesso que me dediquei àquilo. Talvez por crer que teria , enfim, algum reconhecimento. Na festa maior, a de fim de ano, quando da distribuição de dividendos aos acionistas, tornei-me insuperável. Não falo só da qualidade das decorações, iguarias, música Falo das surpresas. Em um ano, os cheques dos acionistas foram entregues por um Papai Noel que entrou pela janela do salão. Em outro, por dançarinas, em sumários biquinis. Houve uma vez em que levei uma atriz de TV, então atuando em novela de grande audiência ( consegui sua colaboração, de graça, por ser cunhada de um primo meu). Em todas as vezes, as festas foram sucessos, mas ele lembrou somente dos defeitos. Cerveja fria, uma ocasião; atraso no início, noutra; ar condicionado fraco, na mais recente. E as reprimendas sempre em público,na frente dos demais funcionários, diretores, contínuos.Anos e anos assim. Dia destes, porém, extrapolou. Humilhou minha namorada,após ela ter entornado, sem querer, uma xicara ,ao servir café durante reunião da diretoria. Estendeu-lhe o próprio lenço e ordenou-lhe que limpasse as gotas que cairam no chão . Não atendeu-a quando pediu para ir à copa buscar um pano apropriado. E ela fez o serviço agachada,diante de todos. Não tem a personalidade tão flexível quanto a minha e, por semanas, a vi ser consumida pelo sentimento de humilhação. No último domingo, não chegasse a tempo, e a encontraria morta em casa por excesso de tranquilizantes. Seu sistema nervoso reagia pessimamente ao dia-a-dia do serviço. Tornara-se-lhe insuportável conviver com os demais colegas. Não. Não podíamos continuar mais ali.Decidimos ir embora. Mas não deixaria de honrar o último compromisso, a festa dos dividendos . E nem furtei-me de preparar a aguardada surpresa anual . Sim. O diretor presidente foi avisado de que ela será inigualável. Está ansioso para vê-la.Como das vezes anteriores, não quis que eu adiantasse nenhuma informação. Prefere ser sempre surpreendido junto com os demais.Este ano, entretanto, ele tem uma função: dar o sinal para que a surpresa se concretize.Para isso, basta apenas pegar a garrafa de champagne da cabeceira da mesa e abri-la. O espoucar da rolha será o aviso para que comece o espetáculo. Tudo muito simples.Então, em cinco minutos o diretor-presidente estourará o champagne... Eu e minha namorada não estaremos por perto quando ele puxar a garrafa e , colada a ela, o pino da granada que deixei presa no fundo do balde de gelo