- Eu não sou investigador!
- Mas vai ter que ir. Não é todo dia que uma mulher é encontrada morta em um estande da Bienal do Livro. Por isso, esse crime vai dar um barulho dos diabos na imprensa.
- Meu trabalho vai ser uma porcaria. Escrivão não investiga, escrivão escreve.
- Não interessa. O importante é que a polícia esteja presente.O pessoal da perícia já foi lá.
O diálogo marcou o início do dia em que escrivão Lúcio começou a investigar um crime.A ordem de serviço foi dada pelo delegado Matias, também diretor do sindicato da Polícia Civil, em telefonema do prédio da Justiça do Trabalho, onde fora participar de reunião com o secretario da Segurança Pública e o juiz. Era mais uma rodada de debates sobre a greve dos policiais. O movimento já entrava na segunda semana, sem perspectivas de solução .Para não descumprir a lei de greve, garantindo os chamados serviços essenciais, o sindicato mantinha, em cada distrito, uma equipe mínima .No distrito de Lucio, o único escrivão era ele,mais dois investigadores. Pinto Pelado trabalhou três dias e,no quarto, foi derrubado por uma dengue. O outro, Santão, precisou ir para casa descansar após quase 72 horas ininterruptas em ação.
- Não pode um caso desses ficar sem assistência policial. Se fosse um craqueiro assassinado em uma birosca no morro do Mundaú, tudo bem. Mas uma mulher? Na Bienal do Livro?Vai chover reporter .Se não tiver ninguém começando as investigações, cairão de pau na gente. A greve e a categoria vão ficar com a imagem arranhada perante a opinião pública.
O delegado e companheiro líder Matias não podia ser mais convincente e, dez minutos depois, Lúcio fazia sua estréia como investigador em um cenário de homicídio.Que não poderia ser mais apropriado: o estande pertencia a uma editora que começava a dedicar-se a livros com histórias policiais e aproveitava a bienal para lançar o primeiro volume de uma coleção chamada Viela do Crime.
"Isso não pode ser coincidência", pensou Lúcio, já treinando o tique desconfiado que deveria permear seu comportamento a partir de então. O corpo não estava mais lá. A equipe de peritos, em tempos de greve, também mínima , trabalhava rápido e à meia boca para atender a todos os casos que surgiam. Lucio teve de contentar-se em examinar o desenho, a giz, de um cadáver no chão.Como não há muito o que se concluir de uma coisa dessas, ligou para o perito Menezes que, após ser devidamente esclarecido sobre que diabos um escrivão estava fazendo na cena do crime, deu as primeiras informações: tratava-se de uma mulher, com idade entre 40 e 45 anos, morta há pelo menos uma hora- portanto às nove horas - e, ao que tudo indica, por um golpe certeiro no coração, causado por instrumento perfurante, de ponta nem fina, nem larga, conforme dava a entender a mancha de sangue na blusa, à altura do seio esquerdo.O corpo estava caído ao lado da pilha de livros no centro do estande. Mais não podia ser dito, senão após um exame melhor no Instituto Médico Legal. A ordem do delegado Matias foi para que removessem o cadáver o mais rápido possível . Antes da chegada de jornalistas. Os peritos sequer mexeram nas roupas da vítima e a operação retirada foi bem sucedida.
Desligado o celular, Lúcio voltou-se, então, para o cenário que se lhe apresentava. O estande possuia dois ambientes: na frente, o espaço livre, aberto ao público, tendo ao centro um estrado cheio de livros e, a um canto, uma cadeira. O outro ambiente era uma saleta, com porta que podia ser trancada a chave. O conjunto ficava na extremidade de um corredor entre duas fileiras de estandes.Ou seja: só tinha um acesso.Um beco sem saída. "O beco de crime.", refletiu Lucio, achando que este seria um título bem melhor para a coletânea de histórias policiais da editora.
Não era nem um pouco fã daquele tipo de literatura. Primeiro porque, a seu ver, os escritores não entendem nada de crimes, nem de soluções. Inventam aquelas bobagens sem a menor noção do que acontece na vida real. A maioria só viu defuntos em velório e olhe lá. Além do mais, têm a mania de apresentar a polícia como um bando de idiotas, truculentos ou incompetentes. "Fazem isso porque, na verdade, são policiais frustrados", concluía psicanaliticamente para quem estivesse interessado em ouvi-lo sobre o assunto. " Os verdadeiros autores de histórias policiais somos nós, os escrivães de polícia. Descrevemos a realidade, muitas vezes quando o crime mal acabou de acontecer" pontificava.
Acontece que, agora, ele não era escrivão. Era investigador.Precisava ouvir alguém e a perspectiva de ter de falar com escritores- pois, ao que lhe informaram, eram as pessoas mais próximas dos fatos ( além da representante da editora, que achara o corpo)- não lhe era muito agradável. Mas tinha que enfrentar os babacas.
Ele já sabia quem era a vítima e não precisou esforçar-se muito para isso pois a representante da editora, uma loura magrinha, nervosa , entre um soluço e outro, lhe informara. A morta era uma professora, que atuava como monitora de um estande da Secretaria Municipal da Educação.
- Cheguei a conversar com ela umas duas vezes. Disse que era fã de histórias de mistério e pretendia comprar o livro Viela do Crime. Fazia questão de obter os autógrafos dos autores- disse a loirinha.
Eram 10 autores, mas, ao lançamento do livro,marcado para as 10 horas daquele dia, só compareceram cinco. Estes combinaram chegar mais cedo, antes da entrada do público no pavilhão Todos na sala, com a representante da editora,alguém sugeriu que se tomasse um café, após o que tratariam dos detalhes da manhã de autógrafos. A representante, então, resolveu buscá-lo na lanchonete do pavilhão.
- No corredor, encontrei com a professora, que estava indo abrir o estande dela. Sugeri que, se ela quisesse pegar os autógrafos , sem atropelos, deveria aproveitar que os escritores estavam em nosso estande . Podia retirar um livro no estrado e me pagar depois. Ela achou a idéia boa e dirigiu-se para nosso espaço . Eu segui até a cantina. Foi tudo muito rápido. Quando voltei, cinco minutos depois, encontrei-a caída, perto do estrado . Fiquei nervosa, gritei pelos escritores, depois chamei um segurança, que ligou para o posto médico. Uma enfermeira veio e disse que a mulher estava morta. Como viu a mancha de sangue na blusa, achou melhor não tocar no corpo e que se chamasse a polícia.
A Polícia Militar chegou primeiro,isolou o lugar; os peritos vieram , fizeram o desenho a giz e sairam com o cadáver . Depois , como já se viu, apareceu o escrivão Mateus travestido de investigador. A próxima etapa de seu trabalho seria falar com os escritores
A necessidade de não perder tempo, aliada à falta de prática para começar uma investigação fez com que Lúcio decidisse interrogá-los coletivamente , dentro da salinha, de porta fechada, para ninguém atrapalhar. Ele na cabeceira e, em volta da mesa de reuniões, duas mulheres - uma grandona, com sotaque gaúcho e uma pequena, japonesa ou nissei- e três homens, um cabeludo, um careca e um quase gordo. Este, com cara de senador, pensou Lúcio, sem saber por que chegara a tal conclusão. .
Terminado o interrogatório, determinou que os cinco permanecessem na sala e foi para a área externa, transmitir, via celular, para o delegado Mateus, o primeiro relatório sobre o caso.Não conseguiu conter a irritação quando falou do interrogatório.
- Olha, doutor, se eu já não gostava de escritores de conto de carochinha policial, agora gosto menos ainda. Aquilo não foi um interrogatório, foi uma mesa- redonda.Eu fazia uma pergunta, eles vinham com uma análise.As duas mulheres eram as piores.
- Você demonstrou, dissimuladamente, é claro, que desconfiava de um deles como autor do crime?
- Não tive nem tempo. Antes que eu abrisse a boca, já foram dizendo que nenhum deles tinha saído da sala. A gaúcha disse que a moça da editora deveria ser descartada porque, quando eles sairam da sala, atendendo a seus gritos, ela ainda estava com a garrafa térmica e um pacote de copos de papel nas mãos e não havia nada que se assemelhasse a uma faca ou estilete por perto.A japonesa arrematou explicando que seria muito difícil,por falta de tempo e pela proximidade da sala, a loirinha desvencilhar-se da garrafa e dos copos, apunhalar, ou algo parecido, a vítima , esconder o punhal- ou coisa que o valha- pegar de novo os pacotes e só então chamar a atenção deles .
- Mas você não colocou a possibilidade de a vítima ter sido agredida em outro local , vindo a cair dentro do estande?
- Quando comecei a tocar no assunto, a japonesa disse que era improvável porque a representante da editora cruzou com a vítima a poucos metros do estande . Se o crime ocorreu logo após isso, ela ainda estava à vista, pois o corredor é comprido, e teria ouvido algum barulho ou notado a movimentação. Além disso, o atacante teria de ficar escondido e agir após a passagem dela rumo à cantina e não havia local onde alguém se enfiar naquele trecho do corredor.
- E se o agressor tivesse entrado pelo outro lado?
- Bem, doutor, nesse caso a conclusão é minha: não daria porque o estande é o último de um beco.Só tem uma entrada e uma saída.
- Puta que o pariu! Será, então, que a mulher se suicidou?
- Quando falei isso, tentando ser sarcástico, o sujeito com cara de senador , sem notar a ironia, foi logo dizendo, todo sério, que nunca ouviu falar de alguém dar uma facada mortal no próprio coração e depois esconder a arma. " Não havia nada que se parecesse com um punhal ou objeto cortante perto do corpo", completou o careca. Ou seja, os contadores de história da carochinha, do alto de sua sapiência literária, só faltaram me dizer que não houve ocorrência nenhuma e que tudo não passou de uma miragem.
- Bem. Vamos manter a calma. Segura os escritores e a mulher da editora no estande. Não os deixe nem ir ao banheiro enquanto não lhe chegarem as informações do Instituto Médico Legal sobre as causas da morte.Liga lá e aperta os caras.
-Falou.
Exatos 32 minutos depois, o escrivão/investigador Lúcio, com a voz meio desenxabida, ligou novamente para o delegado Matias.
-Tudor resolvido, doutor.A perícia acabou de me ligar.
-Resolvido o quê? A dúvida sobre a causa mortis?
- Não, doutor. Resolvido o caso todo.
- Puxa, que beleza! Mas você não parece muito contente com isso.Ânimo, rapaz! Acaba de solucionar seu primeiro crime!
- Mas não houve crime, doutor.
- Como assim?
- A mulher morreu de infarto.
- Não diga! E a mancha de sangue no lado esquerdo do peito e tudo o mais?
- Ela usava um daqueles suportes para quem tem problemas de coluna. Estes coletes têm várias hastes de metal por baixo do tecido. Quando caiu, uma delas soltou e provocou o ferimento de onde saiu o sangue.Mas não foi ele que causou a morte. Era muito superficial.
- Que coisa, não?
- Agora, doutor, gostaria que o senhor me fizesse um favor.
- Pode pedir.
- O senhor podia dispensar os escritores por telefone? Não estou muito a fim de falar com esses caras.