“ Era velho. Setenta ou oitenta anos. A barriga estava morna. Fecharam a boca com dois esparadrapos cruzados. Tinha um anel dourado no anular esquerdo e vestia terno cinza. Um dos dentes inferiores aparecia no canto direito da boca. Morreu de câncer no pulmão. A doença castigou-lhe o corpo, pois, pela grossura dos punhos, parecia bem magro ao morrer”.
Ele descrevia cadáveres , nos caixões, em sua velha caderneta de capa de couro, surrada pelos anos de uso. Anotações detalhadas, cores, formas, expressões. Trabalho que exigia visitas a velórios, atitudes disfarçadas. Descrições que, mais do que fotografias, captavam, naquele momento, imagem e emoção, a face do morto, a sensibilidade do anotador.
“ Mocinha, 15 anos, no máximo. Dizem que se suicidou, jogando-se do 10º andar de um prédio. O rosto não tem marcas , mas está inchado. As mãos são delicadas e pequenas. No dorso da mão direita há uma mancha negra, destas de nascença, na forma do mapa de Minas Gerais. Parecida com a que tenho na perna esquerda. Ela deveria ser meio gorda. Tem uma expressão plácida. Nem parece que teve morte tão horrível. Um dos seios parece maior do que o outro. Isso deve ter alguma relação com a queda”.
À margem de cada nota, a data, com objetivo certo: dali a cinco anos assistirá à exumação. Será um instante de êxtase: a surrada caderneta, na mão trêmula, servirá para comparação entre a cena do velório e aquela que as mãos rudes dos coveiros colocarão diante de seus olhos.
Crânios, cartilagens, costelas, panos velhos, sangue seco, lascas de madeira. E o texto descritivo, ali, de cinco anos atrás, falando em “mãos brancas entrelaçadas sobre o peito, segurando um crucifixo negro, barriga morna, face serena”.
Ele fazia isso.
Explicar, por que, a compulsão? A obsessão do agora e do depois?
Nem tanto.
Havia, antes de tudo, o fascínio por esta transformação verbalizada há séculos no “ és pó e em pó te tornarás”.
Que incrível mudança, pensava ele, da face pensativa do filósofo ao riso escancarado de sua caveira empoeirada ? Dos olhos azuis da símbolo sexual à órbita vazia fitando o nada? Aquela haste comprida , negra, corroída, não foi o braço do general condutor de armas e homens?
Os ossos são todos iguais, concluía, enquanto o barulho das pás na terra era a trilha sonora do trabalho dos coveiros. Um gesto mecânico de fechar a caderneta, olhos no infinito, olhando sem ver.
***
Sentiu, um dia, que tudo estava muito igual.Menores um pouco, maiores um tanto, repetiam-se os esqueletos enegrecidos, como se feitos em série. Mais fascinante do que isso seria ver a decomposição em curso. Uma impossibilidade? Mas tão melhor seria acompanhar a ação destrutiva da natureza, despindo a capa da pele, regendo a dança dos vermes?
Pensou em artifícios mirabolantes: uma filmadora no caixão; esquifes transparentes. Delírios. E a caderneta surrada engordando de anotações.
A solução veio em formas de notícia. Quadrilhas, dizia um jornal, especializavam-se em profanar túmulos. Levavam jóias , dentes de ouro, anéis e tudo o mais que a vaidade dos vivos não poupava aos mortos.
E ele procurou um amigo, que poderia apresentá-lo aos bandidos, já que era bandido como eles. Queria acompanha-los em uma de suas incursões noturnas . Não participaria dos saques.
- Mas eles vão acreditar nisso?- indagou o amigo. Vão achar que você é um alcagüete, disposto a entrega-los à polícia. Na melhor das hipóteses, vão lhe tratar como doido varrido. Não pretende, meu chapa, ao invés de observador, ser personagem de sua caderneta?
- E se eu lhes dizer que tenho uma boa dica? Um corpo coberto de jóias?
Deixou o amigo em cuidados e conselhos e foi para o endereço que ele lhe indicara. Saberia- acreditava- safar-se no momento certo.
E encontrou os malfeitores.
E falou de ouro e prata.
E a voz narrava lucros.
A mente, contudo, fixava-se em uma jovem que se suicidara há apenas um ano e meio, de seios desiguais,sepultada apenas com o dote de sua desgraça.
***
A hemorragia de baratas acompanhou o primeiro estalo da madeira partida a golpes de pé-de-cabra. Sentado em um túmulo próximo não conteve a excitação. A memória fixava , em retrocesso, a imagem da jovem morta há 18 meses. Rosto sereno, seios desiguais...
Aberta a tampa , desaparecem as precauções. Ficara à distância para poder fugir quando os profanadores notassem a ausência do tesouro cobiçado. Mas dali a visão era prejudicada. Aproximou-se e o encantamento, inevitável, o paralisou: ali estava a decomposição em curso. Ossos enegrecidos , uma massa gelatinosa desfigurando o perfil do que antes era a “ face serena”.Órbitas escuras, emolduradas por mechas de cabelos cinzas. Os seios desiguais haviam desaparecido de sob as mãos descarnadas, em cujas extremidades exibiam-se unhas crescidas além da morte.
-Aqui não tem porra nenhuma!, gritou um dos homens.
Não ouviu. Tampouco viu os gestos nervosos dos profanadores, escalando a parede do túmulo. Não sentiu o golpe da pá na testa, nem o impacto de seu corpo no fundo da cova, misturando-se aos despojos do caixão. Restou, sequer, o testemunho da lua, escondida , então, sob providencial nuvem negra.
***
- Há quanto tempo estou aqui?
- Três dias.
- O que há com minha perna esquerda?
- Vamos amputá-la.
- Por que?
- Ela tinha um corte que ficou a noite inteira em contato com a carne putrefata do cadáver. Deu gangrena.
- O que vão fazer depois de cortá-la?
- A lei exige que a sepultemos no cemitério municipal.
***
O paciente dormia. Havia um papel, com inscrições, perto do criado mudo. A enfermeira leu: “ Era uma perna morena. Perto do joelho, uma mancha negra, na forma do mapa de Minas Gerais...”
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