quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O alto e o baixo




Tarde modorrenta, boteco de bairro , o vira-latas deitado ao pé da vitrine de doces, menino tomando conta do bar, no lugar do irmão mais velho, na casa, nos fundos, em soneca diária do pós almoço .Não gosta daquilo, pois quando aparece freguês, ele não sabe atender. Nas férias é assim; em dia de aula, não, pois estava na escola e a soneca do irmão era coberta pela mãe, que largava a roupa, a louça, a costura, o ferro de passar. De férias, é ele o substituto. Não sabe preço de pinga, tamanho da dose, fazer caipirinha,  nada. O irmão explicava que naquela hora nunca tinha freguês. Mas quando tinha, batia o desespero. Criança vindo comprar doce, tudo bem, mas homem pedindo bebida, valha-me Deus! Rabo de galo, meio-a-meio, carqueja, que diabo é isso?
- Mãe!
 E ela vinha , enxugando as mãos, cheirando a água sanitária. Não reclamava. Entendia, como todas as mães. Ele é que se envergonhava cada vez que a chamava. Nesta tarde quente, soneca do irmão mais esticada , dois homens entram no bar. Morenos ambos, um baixo, outro alto. O baixo, atarracado, feições orientais, cara de índio; o alto, esguio, de rosto até bonito.
 - Uma cerveja e dois quebra-gelo.
 - Mãe!
 E ela vem. Em minutos, a cerveja e as duas doses de pinga pura estão sobre o balcão, conforme o pedido feito pelo mais baixo.
 - Tudo certo. São cinco reais. Recebe deles, que vou lá dentro. Tenho que ficar mexendo a água de tintura que deixei no fogão.
 Calcular troco ele sabe, afinal é o estudante da casa.
 - Espera um pouco que vou dar uma mijada.
 E o mais alto dirige-se para os fundos, que é o local dos banheiros de botecos. O outro fica olhando fixamente para a porta do corredor , por onde entrara o mais alto. Quando este ressurge , um susto : o mais baixo aponta-lhe um revólver . Continua apontando enquanto vira-se, sorrindo, para o menino:
- Daqui eu acertava esse cara sem esforço.
 - Mas eu não ia marcar bobeira na sua frente- diz o outro, parado no meio da porta, também rindo. E retorna a seu lugar no balcão. O mais baixo, parecendo não ouvir nada, continua mirando a porta.Com a mão esquerda segura o copo de pinga. Duas bebericadas, um meio sorriso para o menino e um tiro, que vai furar uma das bases do batente.
 - Se eu estivesse lá, você acertava meu pé – diverte-se o mais alto. O mais baixo, outro meio-sorriso para o menino, entorna toda a pinga; o mais alto também, e os dois voltam suas atenções para a cerveja.
 Cinco minutos depois, a polícia.

Tarde modorrenta, delegacia de bairro. O baixo, algemado, sentado na cadeira em frente do delegado. Atrás, respeitosos, os que a polícia convocou, como testemunhas, após a detenção da dupla: seu Ioiô, velhinho curioso, morador da casa em frente, que saltara da rede e fora rápido para perto do boteco, assim que ouvira o tiro; Luquinha, o desocupado, que por acaso ali passava ; dona Lola, que, chegara para comprar água sanitária e vira o baixo recolocar o revólver na cintura, e também o menino, atrás de todos, praticamente escondido no canto da sala. Os soldados, autores da detenção, acharam bom levá-lo também como testemunha dos fatos, além do mais alto, a vítima. A mãe, que disse não ter visto nada, fica na antesala. O mais alto não tinha passagem pela polícia depois de adulto, mas fora conhecido ladrão quando menor. O mais baixo , alcunha China Preto,é assaltante, homicida e traficante.
- A gente estava passando a duas quadras dali quando ouvimos o tiro, doutor. Chegamos rápido no local dos fatos e o elemento atirador nem teve tempo de se livrar da arma.
 O cabo PM termina o relatório, o delegado se retorce na cadeira.
 - Vamos esclarecer a história do tiro.
 O velho Ioiô adianta-se:
 - Bem, doutor, pelo que a gente sabe, o mais alto saia do banheiro e o baixinho aí passou fogo nele.
 - Foi isso mesmo que aconteceu? , indaga o delegado, o olhar percorrendo um a um. Todos respondem afirmativamente. Menos o menino, que dá um passo à frente, tenta falar, mas ninguém lhe
presta atenção. Apenas China fita-o por uns instantes, voltando, depois, à postura anterior: cabeça baixa, olhos semicerrados. A autoridade dirige-se ao mais alto:
 - E você, o que tem a dizer?
 - É verdade, doutor. Se eu não fosse rápido, não estaria aqui para contar a história.
Fala e todos olham para ele. Menos o menino, que olha para China Preto; menos China Preto, que olha para o menino.
 - Muito bem. Policial, recolhe o prisioneiro. Escrivão, tome o depoimento do resto, depois me chame para assinar. Dispensa o menino, pois criança não pode depor.
 Sai o menino, olhando de novo para China, que, agora, não apenas retribui com olhar, mas, também, com um sorriso.

Tarde modorrenta, rua de bairro, a mãe do menino e o menino.
 - Mãe, não é verdade o que eles falaram.
 - Não é verdade o quê?
- O baixo não atirou no alto. Eu era o único que estava lá. Seu Ioiô, Dona Lola e o Luquinha só apareceram depois.
 - Olha, filho, é melhor a gente não se meter nisso. Foi muito bom que te dispensaram. Vamos para casa. Agradeço a Deus porque não aconteceu nenhuma desgraça.
 - Mas mãe, o homem está preso injustamente.
 - Ele é bandido, filho, muito perigoso. Fez muita coisa ruim.
 - Mas ele não atirou no outro.
 A mulher não diz mais nada. Aperta a mão do garoto, apressa o passo e vão para casa, pisando o chão quente da calçada.

Tarde modorrenta, boteco do bairro, duas semanas depois. O irmão mais velho do menino, o menino e a mãe.
 - Veja só: mataram o Dilei – gritou o irmão, olhando o jornal.
 - Que Dilei? Indagou a mulher.
 - Aquele cara alto que quase levou um tiro do China Preto, aquele dia, no bar.
 - Quem é China Preto?
- Era o mais baixo.
 - Foi ele quem matou o Dilei?
 - Não acho. Ainda está preso. O jornal diz que o mais alto estava andando no estradão, com um colega, quando alguém perguntou qual dos dois era o Dilei. Quando ele se apresentou, o sujeito atirou duas vezes.
 - Coitado. Tão novo - Lamenta a mulher. Faz um sinal da cruz e retorna à casa, nos fundos.
 O menino ,quieto, lembrando o último olhar e o riso do China Preto, não consegue ter nenhuma pena do Dilei.

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