quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Os ossos sâo todos iguais


“ Era velho. Setenta ou oitenta anos. A barriga estava morna. Fecharam a boca com dois esparadrapos cruzados. Tinha um anel dourado no anular esquerdo e vestia terno cinza. Um dos dentes inferiores aparecia no canto direito da boca. Morreu de câncer no pulmão. A doença castigou-lhe o corpo, pois, pela grossura dos punhos, parecia bem magro ao morrer”.
Ele descrevia cadáveres , nos caixões, em sua velha caderneta de capa de couro, surrada pelos anos de uso. Anotações detalhadas, cores, formas, expressões. Trabalho que exigia visitas a velórios, atitudes disfarçadas. Descrições que, mais do que fotografias, captavam, naquele momento, imagem e emoção, a face do morto, a sensibilidade do anotador.
“ Mocinha, 15 anos, no máximo. Dizem que se suicidou, jogando-se do 10º andar de um prédio. O rosto não tem marcas , mas está inchado. As mãos são delicadas e pequenas. No dorso da mão direita há uma mancha negra, destas de nascença, na forma do mapa de Minas Gerais. Parecida com a que tenho na perna esquerda. Ela deveria ser meio gorda. Tem uma expressão plácida. Nem parece que teve morte tão horrível. Um dos seios parece maior do que o outro. Isso deve ter alguma relação com a queda”.
À margem de cada nota, a data, com objetivo certo: dali a cinco anos assistirá à exumação. Será um instante de êxtase: a surrada caderneta, na mão trêmula, servirá para comparação entre a cena do velório e aquela que as mãos rudes dos coveiros colocarão diante de seus olhos.
Crânios, cartilagens, costelas, panos velhos, sangue seco, lascas de madeira. E o texto descritivo, ali, de cinco anos atrás, falando em “mãos brancas entrelaçadas sobre o peito, segurando um crucifixo negro, barriga morna, face serena”.
Ele fazia isso.
Explicar, por que, a compulsão? A obsessão do agora e do depois?
Nem tanto.
Havia, antes de tudo, o fascínio por esta transformação verbalizada há séculos no “ és pó e em pó te tornarás”.
Que incrível mudança, pensava ele, da face pensativa do filósofo ao riso escancarado de sua caveira empoeirada ? Dos olhos azuis da símbolo sexual à órbita vazia fitando o nada? Aquela haste comprida , negra, corroída, não foi o braço do general condutor de armas e homens?
Os ossos são todos iguais, concluía, enquanto o barulho das pás na terra era a trilha sonora do trabalho dos coveiros. Um gesto mecânico de fechar a caderneta, olhos no infinito, olhando sem ver.


***


Sentiu, um dia, que tudo estava muito igual.Menores um pouco, maiores um tanto, repetiam-se os esqueletos enegrecidos, como se feitos em série. Mais fascinante do que isso seria ver a decomposição em curso. Uma impossibilidade? Mas tão melhor seria acompanhar a ação destrutiva da natureza, despindo a capa da pele, regendo a dança dos vermes?
Pensou em artifícios mirabolantes: uma filmadora no caixão; esquifes transparentes. Delírios. E a caderneta surrada engordando de anotações.
A solução veio em formas de notícia. Quadrilhas, dizia um jornal, especializavam-se em profanar túmulos. Levavam jóias , dentes de ouro, anéis e tudo o mais que a vaidade dos vivos não poupava aos mortos.
E ele procurou um amigo, que poderia apresentá-lo aos bandidos, já que era bandido como eles. Queria acompanha-los em uma de suas incursões noturnas . Não participaria dos saques.
- Mas eles vão acreditar nisso?- indagou o amigo. Vão achar que você é um alcagüete, disposto a entrega-los à polícia. Na melhor das hipóteses, vão lhe tratar como doido varrido. Não pretende, meu chapa, ao invés de observador, ser personagem de sua caderneta?
- E se eu lhes dizer que tenho uma boa dica? Um corpo coberto de jóias?
Deixou o amigo em cuidados e conselhos e foi para o endereço que ele lhe indicara. Saberia- acreditava- safar-se no momento certo.
E encontrou os malfeitores.
E falou de ouro e prata.
E a voz narrava lucros.
A mente, contudo, fixava-se em uma jovem que se suicidara há apenas um ano e meio, de seios desiguais,sepultada apenas com o dote de sua desgraça.


***


A hemorragia de baratas acompanhou o primeiro estalo da madeira partida a golpes de pé-de-cabra. Sentado em um túmulo próximo não conteve a excitação. A memória fixava , em retrocesso, a imagem da jovem morta há 18 meses. Rosto sereno, seios desiguais...
Aberta a tampa , desaparecem as precauções. Ficara à distância para poder fugir quando os profanadores notassem a ausência do tesouro cobiçado. Mas dali a visão era prejudicada. Aproximou-se e o encantamento, inevitável, o paralisou: ali estava a decomposição em curso. Ossos enegrecidos , uma massa gelatinosa desfigurando o perfil do que antes era a “ face serena”.Órbitas escuras, emolduradas por mechas de cabelos cinzas. Os seios desiguais haviam desaparecido de sob as mãos descarnadas, em cujas extremidades exibiam-se unhas crescidas além da morte.
-Aqui não tem porra nenhuma!, gritou um dos homens.
Não ouviu. Tampouco viu os gestos nervosos dos profanadores, escalando a parede do túmulo. Não sentiu o golpe da pá na testa, nem o impacto de seu corpo no fundo da cova, misturando-se aos despojos do caixão. Restou, sequer, o testemunho da lua, escondida , então, sob providencial nuvem negra.


***


- Há quanto tempo estou aqui?
- Três dias.
- O que há com minha perna esquerda?
- Vamos amputá-la.
- Por que?
- Ela tinha um corte que ficou a noite inteira em contato com a carne putrefata do cadáver. Deu gangrena.
- O que vão fazer depois de cortá-la?
- A lei exige que a sepultemos no cemitério municipal.


***


O paciente dormia. Havia um papel, com inscrições, perto do criado mudo. A enfermeira leu: “ Era uma perna morena. Perto do joelho, uma mancha negra, na forma do mapa de Minas Gerais...”

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O alto e o baixo




Tarde modorrenta, boteco de bairro , o vira-latas deitado ao pé da vitrine de doces, menino tomando conta do bar, no lugar do irmão mais velho, na casa, nos fundos, em soneca diária do pós almoço .Não gosta daquilo, pois quando aparece freguês, ele não sabe atender. Nas férias é assim; em dia de aula, não, pois estava na escola e a soneca do irmão era coberta pela mãe, que largava a roupa, a louça, a costura, o ferro de passar. De férias, é ele o substituto. Não sabe preço de pinga, tamanho da dose, fazer caipirinha,  nada. O irmão explicava que naquela hora nunca tinha freguês. Mas quando tinha, batia o desespero. Criança vindo comprar doce, tudo bem, mas homem pedindo bebida, valha-me Deus! Rabo de galo, meio-a-meio, carqueja, que diabo é isso?
- Mãe!
 E ela vinha , enxugando as mãos, cheirando a água sanitária. Não reclamava. Entendia, como todas as mães. Ele é que se envergonhava cada vez que a chamava. Nesta tarde quente, soneca do irmão mais esticada , dois homens entram no bar. Morenos ambos, um baixo, outro alto. O baixo, atarracado, feições orientais, cara de índio; o alto, esguio, de rosto até bonito.
 - Uma cerveja e dois quebra-gelo.
 - Mãe!
 E ela vem. Em minutos, a cerveja e as duas doses de pinga pura estão sobre o balcão, conforme o pedido feito pelo mais baixo.
 - Tudo certo. São cinco reais. Recebe deles, que vou lá dentro. Tenho que ficar mexendo a água de tintura que deixei no fogão.
 Calcular troco ele sabe, afinal é o estudante da casa.
 - Espera um pouco que vou dar uma mijada.
 E o mais alto dirige-se para os fundos, que é o local dos banheiros de botecos. O outro fica olhando fixamente para a porta do corredor , por onde entrara o mais alto. Quando este ressurge , um susto : o mais baixo aponta-lhe um revólver . Continua apontando enquanto vira-se, sorrindo, para o menino:
- Daqui eu acertava esse cara sem esforço.
 - Mas eu não ia marcar bobeira na sua frente- diz o outro, parado no meio da porta, também rindo. E retorna a seu lugar no balcão. O mais baixo, parecendo não ouvir nada, continua mirando a porta.Com a mão esquerda segura o copo de pinga. Duas bebericadas, um meio sorriso para o menino e um tiro, que vai furar uma das bases do batente.
 - Se eu estivesse lá, você acertava meu pé – diverte-se o mais alto. O mais baixo, outro meio-sorriso para o menino, entorna toda a pinga; o mais alto também, e os dois voltam suas atenções para a cerveja.
 Cinco minutos depois, a polícia.

Tarde modorrenta, delegacia de bairro. O baixo, algemado, sentado na cadeira em frente do delegado. Atrás, respeitosos, os que a polícia convocou, como testemunhas, após a detenção da dupla: seu Ioiô, velhinho curioso, morador da casa em frente, que saltara da rede e fora rápido para perto do boteco, assim que ouvira o tiro; Luquinha, o desocupado, que por acaso ali passava ; dona Lola, que, chegara para comprar água sanitária e vira o baixo recolocar o revólver na cintura, e também o menino, atrás de todos, praticamente escondido no canto da sala. Os soldados, autores da detenção, acharam bom levá-lo também como testemunha dos fatos, além do mais alto, a vítima. A mãe, que disse não ter visto nada, fica na antesala. O mais alto não tinha passagem pela polícia depois de adulto, mas fora conhecido ladrão quando menor. O mais baixo , alcunha China Preto,é assaltante, homicida e traficante.
- A gente estava passando a duas quadras dali quando ouvimos o tiro, doutor. Chegamos rápido no local dos fatos e o elemento atirador nem teve tempo de se livrar da arma.
 O cabo PM termina o relatório, o delegado se retorce na cadeira.
 - Vamos esclarecer a história do tiro.
 O velho Ioiô adianta-se:
 - Bem, doutor, pelo que a gente sabe, o mais alto saia do banheiro e o baixinho aí passou fogo nele.
 - Foi isso mesmo que aconteceu? , indaga o delegado, o olhar percorrendo um a um. Todos respondem afirmativamente. Menos o menino, que dá um passo à frente, tenta falar, mas ninguém lhe
presta atenção. Apenas China fita-o por uns instantes, voltando, depois, à postura anterior: cabeça baixa, olhos semicerrados. A autoridade dirige-se ao mais alto:
 - E você, o que tem a dizer?
 - É verdade, doutor. Se eu não fosse rápido, não estaria aqui para contar a história.
Fala e todos olham para ele. Menos o menino, que olha para China Preto; menos China Preto, que olha para o menino.
 - Muito bem. Policial, recolhe o prisioneiro. Escrivão, tome o depoimento do resto, depois me chame para assinar. Dispensa o menino, pois criança não pode depor.
 Sai o menino, olhando de novo para China, que, agora, não apenas retribui com olhar, mas, também, com um sorriso.

Tarde modorrenta, rua de bairro, a mãe do menino e o menino.
 - Mãe, não é verdade o que eles falaram.
 - Não é verdade o quê?
- O baixo não atirou no alto. Eu era o único que estava lá. Seu Ioiô, Dona Lola e o Luquinha só apareceram depois.
 - Olha, filho, é melhor a gente não se meter nisso. Foi muito bom que te dispensaram. Vamos para casa. Agradeço a Deus porque não aconteceu nenhuma desgraça.
 - Mas mãe, o homem está preso injustamente.
 - Ele é bandido, filho, muito perigoso. Fez muita coisa ruim.
 - Mas ele não atirou no outro.
 A mulher não diz mais nada. Aperta a mão do garoto, apressa o passo e vão para casa, pisando o chão quente da calçada.

Tarde modorrenta, boteco do bairro, duas semanas depois. O irmão mais velho do menino, o menino e a mãe.
 - Veja só: mataram o Dilei – gritou o irmão, olhando o jornal.
 - Que Dilei? Indagou a mulher.
 - Aquele cara alto que quase levou um tiro do China Preto, aquele dia, no bar.
 - Quem é China Preto?
- Era o mais baixo.
 - Foi ele quem matou o Dilei?
 - Não acho. Ainda está preso. O jornal diz que o mais alto estava andando no estradão, com um colega, quando alguém perguntou qual dos dois era o Dilei. Quando ele se apresentou, o sujeito atirou duas vezes.
 - Coitado. Tão novo - Lamenta a mulher. Faz um sinal da cruz e retorna à casa, nos fundos.
 O menino ,quieto, lembrando o último olhar e o riso do China Preto, não consegue ter nenhuma pena do Dilei.