O dia mal amanhecia quando entrou no apartamento e, em gesto que já se tornara mecânico há anos,sempre ao chegar em casa, jogou a arma e o distintivo de policial civil sobre a mesinha de centro da sala. A mesma rotina repetiu-se no ato de ligar a televisão, ir ao banheiro, tomar uma ducha, sair enrolado na toalha, pegar novamente a arma e o distintivo e colocá-los na gaveta do criado-mudo, no quarto.
Mas, há seis meses este gesto não tem testemunha, nem é repetido na mesma casa . Separara-se da mulher, com quem convivera por seis anos, e, há três meses, morava sozinho em um pequeno apartamento .
Ao retornar do banheiro, sintonizou a TV em um canal de notícias.As manchetes do dia – inevitáveis- eram sobre o atentado ao ministro da Administração Federal, ocorrido no início da noite anterior. Aproveitou a pausa para comerciais, foi à cozinha, pegou uma garrafinha de iogurte, dessas que, segundo o rótulo, ajudam na digestão . Quando retornou à sala, um reporter dava detalhes do ocorrido.
O atentado verificara-se momentos após o ministro, em veículo do ministério, sair de sua residência para um compromisso oficial. Quando o motorista freou, antes de entrar na avenida em frente da moradia, um homem aproximou-se e efetuou vários disparos, à queima roupa. Tudo muito rápido . O vigilante da casa mal tinha acabado de fechar o portão, quando presenciou a cena. Correu até o local, mas o atirador teve tempo de escapar por um bosque nas imediações.
Socorridos, instantes após o alarme do vigilante, o ministro e o motorista foram levados para o hospital. Atingido na coxa esquerda e na mão direita, o ministro,que estava no banco de passageiros, escapou do atentado com vida, mas o motorista não teve a mesma sorte. Um dos disparos acertou-lhe a cabeça e ele morreu ainda na ambulância.
Estivesse ainda casado e o fato seria compartilhado com a mulher. Ela viria da cozinha com duas canecas de café fumegante, dar-lhe-ia uma, sentar-se-ia a seu lado e os dois, sorvendo lentos goles, assistiriam ao noticiário.
Sua noite fora agitada.Esticou-se no sofá, fechou os olhos e um leve torpor invadiu-lhe o corpo. Não dormiu. Estava cansado, mas não tinha sono.Voltou a olhar a TV quando ouviu anunciarem entrevista do delegado da Polícia Federal encarregado de investigar o crime.
- Ainda é cedo para qualquer conclusão e algumas pistas que temos manteremos em segredo, para não atrapalhar as investigações.
O mesmo papo de sempre, pensou.Na maior parte das vezes, a autoridade encarregada de um caso de repercussão falava,nas entrevistas, de informações que não podiam ser divulgadas. Na verdade, não deveriam ter pista nenhuma. Mas precisavam dar alguma satisfação pública, sem demonstrar incompetência.
- Ao que tudo indica, o atirador agiu sozinho.Usou uma pistola automática- explicava o delegado.
- O senhor tem idéia da motivação do atentado?- indagou um reporter.
- Sobre isso, não temos opinião formada, respondeu o delegado, encerrando a entrevista.
Corte para a redação.O apresentador do noticiário ao lado de um especialista em segurança. O que levara o agressor a atirar pela da janela do motorista? –indagou o jornalista.
- Tudo indica que ele vigiou, por algum tempo, a casa e a rotina do ministro. Deve ter notado, entre outras coisas, que o ministro , ao invés de ficar na banco de trás, como é mais frequentre, sentava do lado do motorista. Deve ter observado, também, que, após percorrer a faixa de terreno em frente da residência, o motorista parava, antes de entrar na avenida. Segundo o primeiro depoimento do vigia da guarita da casa, sob chuva e à noite,o motorista costumava abrir parcialmente a janela, para facilitar a visão, já que todos os vidros do carro são do tipo fumê. O atirador deve ter notado tal hábito. Deduzindo, possívelmente, que o veículo tivesse janelas blindadas, o elemento, para garantir a eficiência de seu trabalho, esperou por um dia de chuva e o instante propício para se aproximar e atirar dentro do veículo.
Após a entrevista, foi para a cozinha.Precisava tomar um café puro.Enquanto aguardava a água ferver, ligou o rádio.O atentado era o prato cheio das emissoras de notícias.Ouviu argumentos de políticos, opiniões de especialistas em segurança pública; de amigos do ministro. Familiares recusavam-se a falar. E o governo? O que tinha a dizer?- indagou-se. Como a responder-lhe a pergunta, um reporter,diretamente do Palácio Central, anunciava que o presidente da República pretendia manifesta-se sobre o assunto em rede nacional de rádio e TV.
Voltou à sala. Por instantes, antes do primeiro gole de café, ficou olhando a caneca branca .Recordou-se da coleção de canecas artisticamente coloridas de sua antiga casa, uma das manias da ex-mulher. Achava-as todas bonitas, mas sempre bebia na mesma, uma verde musgo, decorada com flores amarelas.Essas pequenas lembranças da vida de casado eram frequentes, agora. Ao se enxugar após o banho, por exemplo, não tinha como não rememorar as toalhas grandes, felpudas e coloridas que ela sempre fazia questão de manter no suporte do banheiro.
Muita coisas miúdas do passado voltavam-lhe à mente em rotinas míudas do presente.Não prevaleciam a saudade ou a nostalgia, entretanto, entre os sentimentos que acompanhavam tais lembranças.A revolta era maior consequência dessas rememorações. Afinal, separara-se da mulher ao descobrir que ela o traía.Sair, pura e simplesmente de casa, fora sua única reação. Sentia que, cedo ou tarde, isso poderia ocorrer.Não era o primeiro policial traído pela mulher.
O psicólogo da Polícia, a quem recorrera em um dos momentos mais críticos de seu casamento, e a quem falara dos cada vez mais frequentres atritos conjugais, fora realista. “ Coloque-se no lugar dela. Você sai, ela não sabe se você volta ou quando volta.Há sempre um mistério em torno do que faz. Quando conversa com ela sobre o trabalho, qual o assunto? Mortes, roubos, assaltos,estupros,tiros. E vocês, policiais, nem sempre colaboram para que essa rotina estranha seja suavizada. Costumam envolver-se mais facilmente com o submundo do que com o ambiente familiar”, disse.
Ao saber da traição, seu primeiro desejo foi matá-la. Todo homem pensa assim, em tais circunstâncias, e um policial pensa mais. Não é esse o código do mundo em que convive a maior parte do tempo? Contudo, poderoso freio conteve a reação : a lembrança do filho, de três anos de idade. E depois, passadas as semanas, inevitável reconhecer: o amor que ainda sentia por ela. Hoje, as emoções antes tão fortes, diluiam-se como a fumaça de um cigarro,permitindo que enxergasse também sua culpa no processo.
Batem, agora, a porta. É o porteiro do prédio, trazendo-lhe o jornal do dia.O atentado ao ministro ganhara quase um caderno especial.Metade do espaço de uma das páginas refletia a perplexidade geral ante a escolha da vítima. Afinal, qual a importância estratégia de se eliminar alguém com tal cargo, de atribuições mais burocráticas que políticas, de um setor de orçamento baixo, com poucas chances para as já notórias negociatas? Seus titulares são,geralmente, funcionários de carreira, que só se tornam conhecidos quando indicados pelo presidente.Em que a morte de alguém assim abalaria os alicerces do poder? Que estrutura política sofreria com isso?-indagava um articulista.
Era difícil, até mesmo, encontrar alguma motivação de carater pessoal . Homem discreto, hábitos regrados , o ministro vivia com a mulher, também funcionária federal, só que aposentada. O casal não tinha filhos e a única atividade que lhes alterava a rotina, nos fins de semana, eram aquelas relacionadas a uma igreja evangélica de que eram frequentadores.” Talvez sua escolha, como vítima, deveu-se ao quase inexistente sistema de segurança de que dispunha, reduzido ao vigilante da casa”, pontificava um político entrevistado.
Largou o jornal sobre o sofá e foi ao banheiro.De tudo o que ouvira, lera e vira até então, sobre o atentado,não havia nada que lhe parecesse relevante.Muitas opiniões, poucos fatos reveladores.Na verdade, lembrava-se agora, a notícia mais importante que recebera, nas últimas semanas, fora a de que o homem com que a mulher o traíra havia se recusado a viver com ela. Na ocasião, a consequência óbvia seria ficar alegre. .Entretanto, só sentiu o refluxo de sentimentos conflitantes. Fizera sofrer a mulher e ela o trocara por outro, fazendo-o sofrer, também. Ela tivera,porém, seu revés, sendo rejeitada pelo amante.Este jogo de compensações precisava ser concluído decidiu, na ocasião.
O som subitamente elevado da TV, coisa típica das chamadas que antecedem informes extraordinários, despertou-o, novamente, do estado reflexivo:
- Entramos em rede nacional para pronunciamento de sua excelência, o presidente da República.
Semblante carregado, esforço no olhar e nos gestos para sublinhar a gravidade do momento, o chefe da Nação falou.
- Estou aqui para manifestar , em meu nome e de todos os cidadãos, o repúdio ante o brutal atentado a um ministro de Estado , crime que atingiu a todos nós, cidadãos de bem, que lutamos por uma sociedade progressista e pacífica. Se os agressores pretendiam desestabilizar o Governo na pessoa de um de seus menbros, fracassaram duplamente em seu intento.O ministro sobreviveu e nós não recuaremos um só milímetro em nossas ações públicas. Não pouparemos, também, esforços para descobrir e punir os autores diretos e indiretos de tão covarde agressão.
Desligou a TV. Não queria ouvir mais nada. O pronunciamento presidencial só o estava irritando. Como autor do atentado, sabia que não fracassara.Seu objetivo não era desestabilizar nenhum governo, era concluir o jogo de compensações de sua tragédia pessoal. E seu alvo não era o ministro. Era o motorista, com quem a mulher o traíra.